Em entrevista, Aldo Vannucchi relembra a trajetória
do sobrinho no enfrentamento à ditadura militar e comenta o trabalho da Comissão
da Verdade.
“Depois de ter passado 40 anos, estamos felizes de
prover que a morte do Alexandre é não apenas uma lembrança de luto, mas uma
proposta renovada de luta, luta pacífica pela autêntica democratização do nosso
país”. A declaração é de Aldo Vannucchi, tio de Alexandre Vannucchi Leme,
estudante da USP, que foi torturado e morto pelo regime militar brasileiro em
1973, e se tornou um dos símbolos do movimento estudantil no combate à
ditadura.
Vannucchi Leme participava da Ação Libertária
Nacional – ALN, que reunia tanto católicos como não católicos, marxistas e não
marxistas. “Alexandre não era marxista; era católico de família católica, mas
viu na ALN um caminho válido de afirmar a sua vontade de libertação do povo
naquela altura da nossa história”, relata Vannucchi. O jovem foi preso pela
Operação Bandeirantes em 16 de março de 1973, e em seguida torturado até a
morte.
“Essa informação de que ele havia sido morto fugindo
da polícia é falsa, porque colegas de cárcere e testemunhas do tribunal
militar, algumas vivas ainda hoje, que estavam em celas contíguas, ouviram, no
dia 16 de março, os gritos dele dizendo: ‘Eu me chamo Alexandre Vannucchi Leme,
sou da ALN e não disse o nome de ninguém’”, afirma tio de estudante.
Na entrevista a seguir, concedida
à IHU On-Line por telefone, Aldo Vannucchi relembra a trajetória do sobrinho no enfrentamento à
ditadura militar e comenta o trabalho da Comissão da Verdade: “Não queremos mandar
ninguém para a cadeia, mas queremos que o Brasil conheça os nomes dos
envolvidos, quais pessoas praticaram atos de terror nos porões da ditadura,
quem foram os médicos legistas que homologaram falsos atestados de óbito, quais
foram os militares que atuaram no regime, quais foram os delegados da Polícia
Civil, quais foram os ‘paus-mandados’ que praticaram tanta barbárie. Só isso e
tudo isso é o que nós queremos”.
Nesta sexta-feira, 15 de março, a Comissão de
Anistia do Ministério da Justiça e a 66ª Caravana da Anistia reconheceram, num
ato oficial, Alexandre Vannucchi Leme como anistiado político, no Instituto de
Geociências da USP.
Às 18h será celebrada uma missa na Catedral da Sé, recordando
a que foi presidida por D. Paulo Evaristo Arns, em março de 1973, em memória de
Alexandre Vanucchi Leme. A missa, na catedral da Sé, em São Paulo, celebrada
sob intensa repressão do aparato militar, foi o primeiro ato massivo, depois do
AI-5 de 1968, de contestação contra a ditadura militar.
Aldo Vannucchi é ex-reitor da Universidade de
Sorocaba – Uniso. Cursou mestrado em Teologia e Filosofia, e lecionou na
Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Sorocaba.
Confira a Entrevista.
IHU On-Line – Pode nos contar a trajetória de
Alexandre Vannucchi Leme, enquanto estudante e militante do movimento
estudantil durante a ditadura militar brasileira?
Aldo Vannucchi – Alexandre Vannucchi Leme, meu sobrinho, é natural
de Sorocaba, SP, onde cursou os estudos iniciais, a educação básica, o
científico (ensino médio), e o curso normal (magistério): pela manhã ele
cursava o ensino médio e à noite, o magistério. Com 18 anos prestou vestibular
para o curso de Geologia, da Universidade de São Paulo – USP, passando em
primeiro lugar. Era um jovem muito talentoso, estudioso, amava ler e já
dominava o inglês com perfeição. No movimento estudantil, distinguiu-se por ser
uma liderança intelectual e afetiva: era muito simples nos seus contatos, no
jeito de se vestir, tinha facilidade de brincar com os colegas, haja vista o
apelido que recebeu dos amigos: Minhoca. Isso porque era franzido de corpo, mas
também porque gostava da terra, do chão, da rocha. Não é à toa que queria ser
geólogo. No movimento estudantil, destacava-se por essa “fome” de aprender e
pela grande facilidade de relacionamento e de conquistar amigos em Sorocaba e
em São Paulo.
IHU On-Line – Ele também recebeu alguma influência
política da família?
Aldo Vannucchi – Sem dúvida. Os pais dele eram professores e ele,
para mim, era o filho que eu ainda não tinha. À época, eu era padre e ele
participava comigo de muitas reuniões seja no mundo universitário, porque eu
era diretor da Faculdade de Filosofia, embrião da atual Uniso, seja na Igreja,
porque eu era assistente eclesiástico da Juventude Operária Católica – JOC.
Alexandre participava dessas reuniões, sabia da minha posição em relação à
ditadura, porque eu também fui preso logo nos primeiros dias do Golpe de 64.
Ele morava pertinho do Seminário Diocesano, onde eu lecionava e, então, desde
pequeno estava na minha companhia e recebeu essa influência de toda a família,
que sempre foi muito atenta à realidade nacional e, no meu caso, de grande
participação política não partidária, mas de muita atuação em favor do pobre,
do operário e em valorização do jovem universitário em Sorocaba.
IHU On-Line – Como aconteceu o envolvimento dele
com a Ação Libertadora Nacional – ALN?
Aldo Vannucchi – Em São Paulo, assim como no Brasil todo, havia
vários movimentos revolucionários num leque muito variado, seja de extrema
esquerda, apelando para a violência e para o uso de armas, até outras alas mais
atentas a um processo histórico que aconteceria com a atuação intelectual, com
transformação progressiva das estruturas. Assim, por exemplo, havia a Ação
Popular, liderada pela Juventude Universitária Católica – JUC, e a Ação
Libertária Nacional – ALN, que reunia tanto católicos como não católicos,
marxistas e não marxistas. Alexandre não era marxista; era católico de família
católica, mas viu na ALN um caminho válido de afirmar a sua vontade de
libertação do povo naquela altura da nossa história.
IHU On-Line – Como acontecia o diálogo entre
marxistas e católicos?
Aldo Vannucchi – Nessa época havia um encontro muito comum na tentativa
de jovens católicos beberem no marxismo não, evidentemente, a seiva
materialista, mas o processo de denúncia do status quo e, ao mesmo tempo, de
libertação e redenção da classe operária e de todo o proletariado.
IHU On-Line – À época da ditadura, os jornais
publicaram que Alexandre havia sido atropelado. Como aconteceu a investigação
da morte dele até se confirmar a notícia de que havia sido morto pelos
militares?
Aldo Vannucchi – Ele estudava em São Paulo e vinha
a Sorocaba a cada 15 dias. Depois, houve uma temporada em que ele não voltou
para casa e ficamos preocupados. Na ocasião recebemos um telefonema anônimo,
talvez de algum amigo dele, dizendo que ele havia sido preso. Isso aconteceu no
dia 17 de março, precisamente o dia em que foi assassinado. Com essa notícia de
que ele havia sido preso, tanto eu quanto o pai dele, meu cunhado, começamos
uma peregrinação em São Paulo procurando-o em delegacias, hospitais, presídios,
sem conseguir informações. Até que, no dia 23 de março, os jornais publicaram a
notícia, segundo a ótica oficial da ditadura, de que Alexandre havia sido morto
fugindo da polícia, atingido por um caminhão. Novamente, meu cunhado e eu
voltamos a São Paulo para procurar informações, as quais não eram dadas de
jeito nenhum. Somente conseguimos os ossos dele 10 anos depois da morte.
Mas essa informação de que ele havia sido morto
fugindo da polícia é falsa, porque colegas de cárcere dele e testemunhas do
tribunal militar, algumas vivas ainda hoje, que estavam em celas contíguas, ouviram,
no dia 16 de março, os gritos dele dizendo: “Eu me chamo Alexandre Vannucchi
Leme, sou da ALN e não disse o nome de ninguém”. No dia seguinte, após muitas
torturas, os carrascos pediram que os outros presos se colocassem de costas
para as grades, sem olhar para os corredores, enquanto arrastavam o corpo de
Alexandre. Depois, os outros presos viram sangue nos corredores. Então, ele
morreu por causa das torturas. Tanto é assim que a família entrou há pouco
tempo com um processo pedindo a correção do atestado de óbito dele, não de
traumatismo craniano, mas de morte causada por torturas.
IHU On-Line – E conseguiram alterar o atestado de
óbito?
Aldo Vannucchi – Não, ainda não. O que conseguimos é um documento
dizendo que ele não era um terrorista, um subversivo, mas sim um anistiado
político.
IHU On-Line – Houve, ao longo desses quarenta anos,
alguma declaração do Estado ou dos militares em relação ao caso de Alexandre?
Aldo Vannucchi – Não. Logo após o seu falecimento, a família entrou
com um processo, mas ele foi obstruído, porque todos os processos acabavam
caindo no Tribunal Militar, onde havia sempre um voto a favor, digamos assim,
da verdade e os nove outros votos eram negados. O único voto a favor da verdade
naquela altura era do general Rodrigo Jordão, tanto assim que chegou um momento
em que ele pediu dispensa daquele tribunal e se afastou.
IHU On-Line – Em 30 de março de 1973, dom Paulo
Evaristo Arns realizou uma missa em memória de Alexandre, com a presença
massiva de estudantes, colegas e militantes. Como o senhor avalia a atuação da
Igreja nesse período?
Aldo Vannucchi – Quando Alexandre foi morto, os estudantes da USP
tentaram fazer um grande movimento de denúncia de toda aquela mentira, de toda
aquela violência e recorreram a dom Paulo Evaristo Arns. Eles queriam uma
manifestação pública dele, da Igreja, até porque o Alexandre, dias antes, havia
participado de um debate na PUC-SP sobre a posição da Igreja naquele momento
histórico da vida e da história do Brasil. Alexandre foi um dos estudantes que
fez perguntas para dom Evaristo e participou daquele debate. Dom Evaristo
atendeu aos estudantes e falou que, em vez de um movimento público, iriam
celebrar uma missa na Sé, e foi o que aconteceu: uma missa com milhares de
pessoas, missa envolvida por grande perigo de novas prisões, mas que foi
celebrada com muita seriedade, muita devoção, marcando profundamente não só os
presentes como também a história da Igreja perante aquela ditadura da época.
Além de dom Evaristo Arns, havia também a atuação
de dom Cândido Padin, que era bispo auxiliar de São Paulo. Evidentemente havia
dom Helder Câmara, do Nordeste, e outros bispos, não muitos, porque
infelizmente a ditadura teve apoio de parte significativa do clero e da
hierarquia brasileira. Mas dom Evaristo e outros marcaram posição especialmente
a partir deste caso do Alexandre, denunciando a ditadura, a violência, a
censura, a tortura. Dom Evaristo marcou muito, especialmente por ter lembrado
que os militares haviam negado à família de Alexandre aquilo que não foi negado
ao próprio Cristo: a entrega do cadáver para sua mãe.
IHU On-Line – Como avalia a atuação da Comissão da
Verdade no sentido de rever a historiografia desse período? Há alguma
expectativa em relação ao trabalho que ainda pode ser desempenhado?
Aldo Vannucchi – A Comissão da Verdade chegou tarde, mas merece
todo crédito, todo apoio e esperamos que ela chegue a bom termo. Está havendo
muita resistência por parte de grupos que ainda hoje acham que naquele tempo
havia disciplina, ordem e até milagre econômico, mas a Comissão da Verdade está
fazendo um belíssimo trabalho. Ela está atuando não apenas em âmbito nacional,
mas também nos estados, e espero que chegue a bom termo, porque é questão de
justiça e de direito: o direito à verdade, à memória, à justiça histórica.
Também gostaria de lembrar que, no caso do Alexandre, nós estamos esperando
essa declaração de que ele, dentro de toda a verdade histórica, não foi um
terrorista, até porque o acusavam de atos terroristas em uma temporada na qual
ele estava hospitalizado em Sorocaba. Naqueles dias em que acusam atos de
terror praticados por ele, na realidade ele estava hospitalizado aqui na cidade
(Sorocaba), porque havia feito uma cirurgia de apêndice, uma apendicectomia.
Então, a mentira fica escancarada. Essa Comissão da Verdade está terminando os
seus trabalhos, e não queremos mandar ninguém para a cadeia, mas, sim, que o
Brasil conheça os nomes dos envolvidos, quais pessoas praticaram atos de terror
nos porões da ditadura, quem foram os médicos legistas que homologaram falsos
atestados de óbito, quais foram os militares que atuaram no regime, quais foram
os delegados da Polícia Civil, quais foram os “paus-mandados” que praticaram
tanta barbárie. Só isso e tudo isso é o que nós queremos.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algo?
Aldo Vannucchi – Simplesmente dizer que depois de dez anos
conseguimos, através do molde da arcada dentária dele, identificar seus ossos e
trazer a urna contendo-os para enterrar no jazigo da família, em Sorocaba.
Depois de ter se passado 40 anos, estamos felizes de prover que a morte do
Alexandre é não apenas uma lembrança de luto, mas uma proposta renovada de luta,
luta pacífica pela autêntica democratização do nosso país.
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/12340
15/03/2013
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