“Os 14
anos de governo Chávez são o que a sociedade venezuelana produziu de melhor em
seu tempo histórico”, afirma o professor Alfonso Klein.
Patrícia Benvenuti,
da Redação.
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Hugo Chaves |
Em meio à comoção causada pela morte do presidente
venezuelano Hugo Chávez, ganham destaque os inúmeros legados deixados pelo
“comandante” – apelido pelo qual era conhecido entre seus simpatizantes.
Reformas na educação, saúde, habitação, reforma
agrária, política externa, muitas foram as áreas que receberam atenção do
governo e melhoraram seus índices.
Na avaliação do coordenador do Núcleo de Estudos
Marxianos Latino-Americanos e professor de Relações Internacionais pela
Unioeste de Toledo (PR) Alfonso Klein, o saldo do período é positivo e
altamente simbólico para o país: “Os 14 anos de governo Chávez são o que a
sociedade venezuelana produziu de melhor em seu tempo histórico, com muitas
limitações e permanentes conflitos, porém com conquistas pró-revolucionárias
importantes.”, afirma.
Na entrevista a seguir, Klein resgata fatos importantes da
trajetória de Chávez, anteriores à sua chegada à presidência da República, e
destaca os principais avanços ocorridos no período em que governou a Venezuela.
Veja a Entrevista Abaixo:
Brasil de Fato - Como você avalia os 14 anos de
governo Chávez?
Alfonso Klein - Os 14 anos de seu governo sintetizam um longo
processo histórico do país, incorporando todos os valores políticos coletivos
dos revolucionários e reformistas. Contudo, os 20 anos (1992-2012) de vida
pública de Chávez deixam estampada a marca de um líder carismático, ousado e um
profundo conhecedor do marxismo, do bolivarianismo e do cristianismo
libertário, comprometido com as causas populares e o internacionalismo
anti-imperialista.
Do marxismo adotou um caminho gramsciano de disputa da
hegemonia e da participação popular para a construção de um novo bloco
histórico; de Simon Bolívar (iluminista) adotou o caminho da construção da
“Pátria Grande”, da independência e da integração da América Latina, e do
cristianismo, a opção pela libertação dos pobres, conforme orientação da
Teologia da Libertação.
Dos governos da atualidade foi o que mais desmascarou a
camuflada luta de classes na sociedade capitalista, através das reformas
antineoliberais e anti-imperialistas, por isso pró-revolucionárias, construiu a
unidade na diversidade latino-americana dos povos oprimidos em blocos de resistência,
como a Alba.
Em linhas gerais deixou um governo
nacional-desenvolvimentista, em permanente crise política resultante das
reformas pró-revolucionárias. Contudo, penso que não seja possível avaliar os
14 anos do governo Chávez sem mergulhar na História da Venezuela das últimas
décadas. Nos anos 80 os sindicatos e partidos políticos de representação da
classe trabalhadora e das camadas populares viviam um distanciamento enorme das
suas origens, extremamente burocratizados e em conciliação de classes (durante
40 anos), em aliança com os governos burgueses, desde 1958 (pelo Pacto Ponto
Fixo), sob hegemonia da AD e COPEI (em revezamento), com base social junto à
CTV e à burguesia pró-imperialista, que somente terminou em 1998 com o
esgotamento do neoliberalismo.
Dos partidos políticos existentes, apenas parte
do Partido Comunista Venezuelano (PCV-1931) foi excluído do Pacto, que fez
opção pela luta armada no período de1960-1970. Nas décadas 80 e 90, o
neoliberalismo foi se consolidando, produzindo a expropriação e o sucateamento
do patrimônio e dos serviços públicos. O petróleo, que desde os anos 20 é a
principal fonte econômica do país, foi essencialmente negócio das
transnacionais, essencialmente estadunidenses, e com os governos neoliberais
produziu nas camadas populares revolta, indignação e protestos por todo lado.
Surgiu nessa época um movimento social de novo tipo, independente e à revelia
das organizações tradicionais do movimento sindical e partidário. O último
governo desse período, de Carlos Andrés Pérez, agiu com violenta repressão,
provocando inúmeras mortes e feridos entre os manifestantes, caracterizando o
chamado Caracazo (1989), que culminou na cassação do mandato presidencial. O
Caracazo se resume em uma insurgência das massas contra as forças neoliberais e
pró-imperialistas de governo, que abriram uma brecha revolucionária na História
do país.
E que, devido à falta de partidos ou frentes revolucionárias com
suficiente inserção na classe trabalhadora e suficiente capacidade
organizativa, não se transformou em um processo revolucionário radicalizado, no
sentido clássico do marxismo. Em 1992, Hugo Chávez comandou uma insurgência
militar (MRB – Movimento Revolucionário Bolivariano) para derrubar o governo,
cuja iniciativa fracassou e Chávez foi preso.
A rendição do movimento se deu
mediante negociação de um discurso em rede nacional da mídia. Com o discurso,
Chávez fez conhecer as denúncias dos insurgentes ao neoliberalismo e a defesa
do bolivarianismo. Após três anos de prisão começou a construir uma frente
política para disputar o caminho eleitoral.
Em 1998, Chávez organizou o Movimento V República,
uma frente de partidos de esquerda e de centro, além de representantes dos
movimentos sociais de novo tipo. Lançou sua campanha antineoliberal em toda
Venezuela e nas eleições de 1998 foi eleito presidente da República com maioria
absoluta dos votos.
Já no primeiro ano de governo apresentou ao Congresso
Nacional a proposta da Constituição Bolivariana, que acelerou um processo de reformas
jurídico-políticas, que podemos chamar de reformas pró-revolucionárias, à
medida que instituem várias medidas que visam a organizar o poder popular. Os
primeiros anos de governo já foram de confronto com os interesses neoliberais e
imperialistas.
Em 2002, a oposição pró-imperialista dos donos do
petróleo privado e da mídia, além de outros ricos proprietários dos meios de
produção do país, com apoio dos Estados Unidos contra as reformas
socioeconômicas, organizaram a greve patronal em abril de 2002 e realizaram o
golpe que derrubou o presidente Chávez do poder, em dezembro do mesmo ano. Mas,
ao mérito do massivo apoio popular dos pobres, dos movimentos sociais e de
parte significativa das forças armadas, além de uma enorme sorte, foi
reconduzido ao poder.
A principal razão do campo das reformas socioeconômicas
não apresentar grandes avanços deve ser debitado à resistência burguesa. Fato
mais relevante disso se registra com a revogação imediata dessas leis, por
decreto de Pedro Carmona nas suas poucas horas de governo golpista em 2002. Nas
mesmas horas revogou também o convênio entre Venezuela e Cuba, do petróleo a
preço de custo em troca de políticas de saúde e educação.
Observa-se também que
a mobilização social contra o golpe e a recondução de Chávez ao poder podem ser
consideradas como a segunda importante insurgência popular (brecha
revolucionária) do período, que não foi radicalizada no sentido revolucionário
clássico marxista, devido à falta de um partido ou uma frente revolucionária
suficientemente orgânica para conduzir a revolução, semelhante ao que ocorreu
com o Caracazo em 1989.
Em 2004, sob referendo popular, seu mandato foi
confirmado por ampla maioria, opção política de risco, que apresentou
características de uma democracia representativa ousada, que colocou inclusive
seu líder máximo sob referendo. Uma situação que deu muito conflito entre
oposição e governo, e também dividiu os trotskistas, ocorreu na ocasião da não
renovação da concessão de uso da RCTV em 2007. Registra-se que os proprietários
deste veículo de comunicação estiveram à frente do golpe de 2002, além da
constatação de sonegações de impostos, programas impróprios para a cultura
venezuelana e a defesa intransigente do imperialismo estadunidense.
Em 2007, no referendo sobre a reforma de itens da
Constituição, [Chávez] sofreu uma derrota significativa, embora a diferença
tenha sido de 1% a favor da oposição. Entre outras questões, a reforma
instituiria as milícias armadas, a propriedade social da terra, a redução da
jornada de trabalho de 40h para 36h. Além dos pró-imperialistas da burguesia
interna, parte significativa da esquerda trotskista fez campanha contra a
aprovação das reformas, sob a argumentação de que Chávez estava com intenções
de consolidar um poder vitalício e criar um novo bonapartismo.
Durante os 14 anos de governo Chávez, as políticas
socioeconômicas somam conquistas importantes para a sociedade, em especial para
a população pobre. O excedente de produção do petróleo, principal fonte
econômica, foi instrumento para alavancar as políticas sociais de educação,
saúde, moradia e alimentação, além da promoção de solidariedade com outros
países pobres da América Latina, Caribe e África.
Vale destacar a erradicação
do analfabetismo; a Universidade Bolivariana, especialmente para jovens
trabalhadores; e a saúde com postos avançados na periferia do país. A saúde foi
qualificada, com a ajuda de equipes médicas e kits de medicamentos, em aliança
com o governo cubano. Registra-se, também, a nacionalização de muitas empresas
falidas ou estratégicas para o desenvolvimento do país. Muitas delas assumidas
pelos trabalhadores em aliança com o governo, sob o formato de cooperativas.
Essa experiência vive em crise, devido à reclamada falta de autonomia e
independência dos trabalhadores e à dependência frente à burocracia do Estado.
O nacional-desenvolvimentismo se justifica pela melhoria dos índices de
qualidade de vida, resultantes das políticas sociais sustentadas com recursos
do petróleo para o barateamento da moradia, do mercado popular a preço de custo
ou por distribuição gratuita, das melhorias na saúde e na educação.
Importantes
reivindicações na área econômica ainda não tiveram implantadas as medidas
necessárias: a reforma agrária ou revolução agrária, conforme defendido pela
Frente Nacional Campesina Ezequiel Zamora [FNCEZ]; a suficiente produção de
alimentos, já que 80% dos gêneros alimentícios continuam sendo importados, o
que é consequência direta ou indireta da situação do latifúndio ainda
hegemônico no país, de produção essencialmente exportadora. Nos negócios
urbanos, a grande indústria, o grande comércio e os bancos, em sua maioria,
ainda continuam nas mãos da iniciativa privada.
Em suma, os 14 anos de governo Chávez são o que a
sociedade venezuelana produziu de melhor em seu tempo histórico, com muitas
limitações e permanentes conflitos, porém com conquistas pró-revolucionárias
importantes. Não é um governo que os socialistas e comunistas clássicos
defendem, mas foi um governo que combinou a convicção bolivariana de integração
latino-americana com a disputa de hegemonia no sentido gramsciano, em especial
no campo político e jurídico.
Hugo Chávez conduziu o país nesse período com
elevado grau de centralismo político, por um lado devido à sua capacidade
organizativa e, por outro lado, devido à insuficiência orgânica de partidos e
movimentos sociais e revolucionários independentes para conduzir a revolução
venezuelana. O governo Chávez criou a mídia estatal e alternativa para
divulgação das políticas sociais, a organização das diferentes organizações
populares para enfrentar a mídia sob controle dos pró-imperialistas. Além
disso, motivou a leitura e o debate político nas ruas para o povo pobre,
através do barateamento do custo dos livros e demais meios de difusão do
conhecimento.
Chávez, como comandante da “revolução bolivariana”
da Venezuela e ao mérito da grande capacidade de organização política na
América Latina, tem espaço na História ao lado dos grandes líderes como Che
Guevara, Fidel Castro, Mao Tsé Tung e Lênin.
Brasil de Fato - Em qual área, na sua avaliação,
foram implementadas as medidas mais importantes?
Alfonso Klein - Considero as reformas pró-revolucionárias como sendo da maior importância do governo Chávez nos 14 anos. Embora essencialmente nos campos político e jurídico, colocaram em movimento as camadas populares e a classe trabalhadora para a construção, embora frágil, da experiência de poder popular, através dos conselhos comunais, dos referendos, das missões e das cooperativas mistas.
Ao lado das importantes ferramentas de luta dos
trabalhadores, por local de trabalho, da União Nacional dos Trabalhadores, da
FNCEZ e demais organizações independentes, as reformas chamadas
pró-revolucionárias garantem força popular e provocam a reação burguesa
pró-imperialista. Exemplos de conflitos e de disputa de hegemonia não faltam
entre revolucionários bolivarianos e pró-imperialistas: o golpe e contragolpe
de 2002 e a reação contra os itens da reforma constitucional no referendo de
2007. Um processo revolucionário mais radicalizado está sendo incitado pela burguesia,
como reação às reformas que consolidam lentamente o poder popular e a economia,
que assume cada vez mais um caminho social desenvolvimentista.
Penso que, se
não houvesse acordos tácitos momentâneos por parte do governo com a burguesia
interna contrarrevolucionária, em acelerar menos as reformas socioeconômicas, o
processo revolucionário do país estaria mais avançado, mas as forças
revolucionárias em partidos ou frentes da Venezuela me parecem não preparadas
para tal tarefa. Além da conjuntura difícil, em nível mundial, com pouco apoio
de outros governos e dos revolucionários para uma radicalização maior nas
reformas.
Brasil de Fato - Quais as conquistas do governo
Chávez em termos de participação popular?
Alfonso Klein - Em primeiro lugar, a aprovação da Constituição
Bolivariana para consolidar um novo modo de operar o poder de Estado, combinado
com o poder popular. Em segundo lugar, colocando em prática os referendos
populares para assuntos mais polêmicos. Inclusive colocando sob votação se o
Presidente da República deve ou não continuar na presidência em 2004.
A
Constituição Bolivariana garante que todos os cargos de poderes instituídos por
referendo popular podem ser substituídos em nova eleição, se assim os eleitores
em amplo abaixo-assinado o manifestarem. Tendo-se como referência a democracia
representativa, não se conhece outra experiência mais avançada na sociedade
capitalista.
Percebe-se uma mistura de democracia representativa com democracia
direta, chamada de democracia participativa. É claro que não se trata de uma
democracia operária e nem operário-popular, conforme a defesa de muitos
militantes da esquerda revolucionária da Venezuela. Mas, além da participação
popular e dos trabalhadores nos espaços de poder, através dos conselhos
populares, missões da área social e comitês de terra, outros sujeitos ativos
nas chamadas minorias passaram a ser mais respeitados, entre esses, as nações
indígenas que passaram a ter espaço nos conselhos políticos para defenderem
suas causas.
O governo Chávez assumiu postura veemente contra a discriminação
de pobres, negros, mulheres e índios, além de criar espaço de poder nos
conselhos para sua efetiva participação. No chamado poder popular nos bairros,
nas chamadas subprefeituras, o gerenciamento da distribuição de alimentos, a
gestão da saúde pública, da educação e da moradia popular ficou sob
responsabilidade de militantes eleitos na comunidade.
Registra-se, por outro
lado, que a participação popular na Venezuela não está suficientemente madura,
devido à falta de organização da classe trabalhadora e dos movimentos sociais
de forma independente, para indicar seus representantes e substituí-los, quando
necessário, nos espaços de poder do Estado. Uma das consequências disso é que
as organizações dos trabalhadores e dos movimentos sociais, muitas vezes, ficam
sem lideranças capacitadas para dar continuidade às lutas específicas da classe
como sujeito histórico.
Brasil de Fato - Qual a importância do governo
Chávez para a integração da América Latina?
Alfonso Klein - O governo Chávez buscou inspiração em Simon
Bolívar (embora iluminista) e os demais protagonistas das independências
latino-americanas, no sentido da necessidade da construção da Pátria Grande
para fazer frente aos impérios e à exploração capitalista internacional. Chávez
foi protagonista na idealização e organização da ALBA. Participou efetivamente
da organização da Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos [CELAC],
além da presença importante na UNASUL e no Mercosul. A ALBA, discussão puxada
inicialmente pelos governos da Venezuela e de Cuba, acrescidos pelos governos
da Bolívia, do Equador, da Nicarágua.
Hoje essa é uma experiência consolidada,
não somente como organização econômica para fazer frente ao neoliberalismo e à
ALCA, com a moeda alternativa ao dólar, o Sucre, e banco estatal unificado.
Vários movimentos sociais organizam-se nas instâncias da ALBA. O governo Chávez
garantiu petróleo para os países pobres da América Latina a preço de custo.
O
convênio com o governo cubano, trocando petróleo por educação e saúde, garante,
em grande medida, a continuidade do caminho revolucionário daquele país. A
imprensa alternativa à mídia burguesa, viabilizando a Telesur, também realidade
presente em vários países da região, além da presença mundial via internet. A
discussão do socialismo do século XXI, puxada pelo governo Chávez e o PSUV, em
especial nos espaços do Fórum Social Mundial, contribuiu para uma necessária
unidade entre os oprimidos da América Latina e do Mundo.
Brasil de Fato - Quais as perspectivas agora para a
Venezuela?
Alfonso Klein - Com o falecimento de Hugo Chávez, interinamente
assumiu seu vice-presidente Nicolás Maduro, no período necessário para que a
sociedade venezuelana possa eleger o novo presidente em 30 dias. As forças
políticas de situação e de oposição estão em movimento para definição do
governo dos próximos 6 anos.
A perspectiva é que a situação dê continuidade ao
governo de Chávez por algumas razões básicas: o governo Chávez contava com um
amplo apoio popular; melhorou a qualidade de vida para a população mais pobre;
a comoção nacional está viva pela perda do seu líder; a máquina de Estado está
sob controle do atual governo; os pró-imperialistas terão pouco tempo para a
campanha, principalmente midiática; a oposição terá dificuldade de encontrar um
líder carismático com suficiente inserção social.
Contudo, o candidato que vencer as eleições e
assumir o governo terá pela frente alguns importantes desafios: reduzir o
desemprego e a desigualdade; dar continuidade às reformas socioeconômicas
(reforma agrária; reforma urbana – moradia; estatização das empresas estratégicas
– indústria, comércio, bancos...); e continuar radicalizando as políticas
sociais na educação, na saúde e na alimentação com o excedente dos recursos do
petróleo, no sentido antineoliberal, anti-imperialista e em busca da superação
anticapitalista.
Portanto, essa perspectiva somente será viável por um governo
pró-revolucionário, na continuidade do governo Chávez, ou um governo sob o
controle dos trabalhadores e demais oprimidos do país. O conjunto dos
revolucionários orgânicos na classe trabalhadora, no governo bolivariano e
demais oprimidos do país, deverá assumir na unidade da diversidade a luta
cotidiana das transformações necessárias junto aos demais revolucionários da
América Latina e do Caribe.
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/12330
15/03/2013
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