Para professor da UFRJ José Paulo Netto,
interpretação do pensador Florestan Fernandes sobre o país resultou numa teoria
do Brasil.
Pedro
Carrano, de Vitória (ES)
Florestan Fernandes - Foto: Arquivo Brasil de Fato |
A contribuição de Florestan Fernandes para o
desenvolvimento de um olhar sobre o Brasil permanece na ordem do dia para o
debate da esquerda brasileira. Essa é a compreensão de José Paulo Netto,
professor da Escola de Serviço Social da UFRJ e integrante do Partido Comunista
Brasileiro (PCB).
Em debate organizado pela Escola Nacional Florestan
Fernandes (ENFF), em parceria com a Universidade Federal do Espírito Santo (UFES),
ele falou sobre o legado do pensador brasileiro ao Brasil de Fato. Além
disso, Netto problematizou a relação entre os movimentos sociais e a sua
incidência na universidade pública.
Veja a Entrevista Abaixo:
O professor da UFRJ José Paulo Netto - Foto: Pedro Carrano |
Brasil de Fato – Você está participando de uma mesa
sobre o pensamento de Florestan Fernandes. Qual a atualidade do pensamento de
Florestan hoje?
José Paulo Netto – A meu juízo, Florestan foi o
maior cientista social brasileiro. E se a gente olhar com cuidado, o conjunto
da sua obra, que é muito diferenciada, você percebe sua evolução, levando em
conta os trabalhos dele do final dos anos 1940 até, por exemplo, a sua
intervenção pública, na primeira metade dos anos 1990 – porque na obra dele não
há como separar o cientista do homem público que ele foi.
Eu diria que o Florestan tem uma obra diferenciada,
com momentos distintos, mas ele deixa uma teoria do Brasil. Meu amigo Carlos
Nelson [Coutinho] (falecido em 2012), falava em imagem do Brasil. Eu acho que é
mais que isso, é uma teoria do Brasil que ele formula. Eu diria que é uma
interpretação do Brasil. Quando o Florestan, ainda fortemente funcionalista,
está pensando na função da guerra entre os tupinambás, ele não está estudando
um objeto arqueológico, ele está querendo entender o Brasil.
Brasil de Fato – Ele traz um aporte a partir da
caracterização de nossa economia como dependente. E qual a definição que ele dá
ao caráter da elite brasileira?
José Paulo Netto – O capitalismo periférico,
dependente, a percepção que ele tem das nossas classes dominantes, isso é um
momento da obra do Florestan. Esse é o momento culminante da obra do Florestan,
eu diria que pós-golpe de 1964. O Florestan que foi, arbitrária e brutalmente,
impedido de exercer seu magistério, pelo AI-5. Esse é o momento alto da obra de
Florestan.
Mas não é o único dessa obra. Eu lembraria a você o
trabalho sobre os negros, publicado na primeira metade dos anos 1960, a
integração do negro na sociedade de classes, um contributo ao que eu chamo de
teoria do Brasil. A concepção de dependência do Florestan não era weberiana,
como foi de alguns teóricos da dependência que foram discípulos dele, o caso
típico de Fernando Henrique Cardoso. Ele tem uma compreensão, a meu juízo,
rigorosamente marxista.
Os duros juízos dele sobre as classes dominantes
brasileiras me parecem absolutamente corretos e verazes. Falecido há 18 anos,
Florestan é um absoluto contemporâneo nosso, um companheiro de jornada. É
bastante provável que num juízo futuro os novos problemas da realidade
brasileira exijam respostas que talvez não encontremos na obra de Florestan,
mas as questões centrais foram as colocadas por ele.
Brasil de Fato – Essas questões também ocorreram em
um contexto de produção e busca de compreensão sobre o Brasil, que envolveu
outros pensadores?
José Paulo Netto – No que estou chamando de teoria
do Brasil de Florestan há um contributo de originalidade intelectual que é
indiscutível. Mas Florestan é impensável, por exemplo, sem Caio Prado Júnior.
Aquela obra-prima que é o livro A Revolução Burguesa no Brasil – com o que
muita gente discorda – é uma reflexão originalíssima. Há um diálogo contínuo
com Caio Prado, para dar um exemplo.
Na verdade, temos grandes pensadores, que não são
necessariamente pensadores progressistas ou de esquerda, mas que contribuem
para a construção disso que eu chamo de teoria do Brasil.
O professor Octavio Ianni costumava dizer que havia
uma família de pensadores, uma linhagem que começa a rigor com Euclides da
Cunha, que vai envolver personagens extremamente conservadores, como por
exemplo, Oliveira Viana, um pensador no limite do conservadorismo. Florestan se
beneficiou do diálogo com todos esses autores. Agora, atenção: foi um diálogo
extremamente crítico. Isso permitiu a Florestan, face a vários pensadores,
elaborar uma síntese superadora e criativa.
Brasil de Fato – Saindo um pouco do contexto da
conversa, há um texto recente em que você analisa que não há um problema de
falta de teoria na esquerda; que o problema, hoje, é organizativo.
José Paulo Netto – É um artigo pequeno, “O déficit
da esquerda é organizacional”, mas que causou polêmica. Mas continuo
sustentando aquilo. Eu não acho que nós já conhecemos o Brasil. Nós temos uma
produção sobre o Brasil, e atenção: de pensadores marxistas e não marxistas. O
que nos dá um estoque crítico para enfrentar a particularidade brasileira.
Eu não penso que os problemas da esquerda
brasileira, hoje, estão num conhecimento deficitário da realidade brasileira. E
da inserção do Brasil no mundo contemporâneo. Eu insisto, nós ainda não
deciframos completamente esse enigma que é o Brasil. E aí a contribuição dos
marxistas me parece importante, mas é preciso levar em conta que a constituição
desse estoque de conhecimentos envolveu e envolve protagonistas, pesquisadores
e estudiosos, que não são necessariamente marxistas e de esquerda.
Mas a
esquerda tem que se beneficiar e tem sido beneficiária disso. Eu não creio que
as dificuldades da esquerda derivem da falta de um conhecimento substantivo da
realidade brasileira. Eu penso que não tem sido possível conjugar esse
conhecimento, sua implementação, no sentido de transformações revolucionárias e
socialistas, da sociedade brasileira. Não tem sido possível articular isso com
movimentos sociais de envergadura, e sobretudo organizações
político-partidárias, significativas e expressivas, com ponderação forte na
vida brasileira.
Brasil de Fato – Cursos como o de especialização em
Economia e Desenvolvimento Agrário, uma parceria entre a ENFF e uma
universidade pública (Ufes), apontam para a a necessidade de os movimentos
sociais ocuparem o espaço da universidade, ainda pouco acessível à maioria?
José Paulo Netto – Vou me ater à universidade
pública brasileira, cujo quadro é diferente da universidade privada. Acho que
este tipo de experiência ainda é residual porque a nossa Universidade permanece
excludente, apesar dos processos de massificação que tenham ocorrido dentro
dela. Eu não diria democratização, mas massificação.
É um espaço com uma tara elitista, e isso é um viés
negativo na nossa história acadêmica. A Universidade foi pensada para formar e
servir as elites, mas numa sociedade de convivência democrática que temos hoje,
do ponto de vista das liberdades políticas, a universidade também reflete as
contradições que estão fora dela.
Existe aí um enorme conservadorismo, mas há
segmentos abertos a mudanças, progressistas, segmentos de esquerda. A universidade
pública brasileira está cheia de problemas, mas ruim com ela, pior sem ela. Há
que ter claro as limitações e as mazelas e defender o patrimônio que representa
a universidade pública. Isso porque, se nesta universidade são residuais as
experiências como esta, se nós abrirmos mão da defesa do caráter público, aí é
que essas experiências não existirão.
Eu estou convencido que essa experiência do MST (na
UFES), e de outros movimentos, não só aqui nessa universidade, mas em outros
pontos, mostram que há que há audiência, ressonância e condições de se
contribuir para romper essa tara elitista. O êxito dessas experiências pode
reduzir resistências porque nem todas são conservadorismo político, muitas das
quais são corporativas. Alguns defendem que nesses programas não há excelência
e qualidade. Se nós trabalharmos visando a excelência e a qualidade, vamos
desarmar essas críticas e parte desses setores vão colaborar.
Brasil de Fato – Como você analisa a realidade
brasileira a partir de recentes movimentações de trabalhadores no campo
econômico? Isso pode gerar condições para o debate da esquerda voltar a ganhar
força?
José Paulo Netto – Olha, eu sou otimista, mas como
o meu velho mestre, Lukács, eu não sou otimista a curto prazo. Eu penso que os
trabalhadores sofreram no mundo inteiro nos últimos 25 anos derrotas profundas
que conduziram as classes trabalhadoras a uma posição defensiva, ou seja uma
conjuntura – para usar uma linguagem cara ao professor Florestan – claramente
contrarrevolucionária. Mas isso não apagou as lutas de classe. Tem gente que
pensa que as lutas estavam velhas e voltaram com a crise do Euro.
Eu não penso
isso não, as lutas sociais prosseguiram, moleculares, nem sempre com
visibilidade, mas os trabalhadores não foram conduzidos a essa condição
bovinamente. Resistiram e não há dúvida de que no mundo essas lutas defensivas
estão ganhando maior força e, no Brasil, também há uma reanimação do movimento
dos trabalhadores. Se essas mobilizações não deixarem nenhum saldo
organizativo, gerando novas direções de vanguardas, que se refletiriam em
partidos e movimentos sociais, terão impacto, mas não será potencializado.
Brasil de Fato – Qual a importância da formação em
um momento de descenso da luta de massas?
José Paulo Netto – Acho que a coisa mais viva neste
país se manifesta em duas dimensões, a primeira dimensão é a relação e a
prática internacionalistas que eu vejo efetivamente no MST. A segunda, que para
mim é da maior importância para a esquerda brasileira, se desenvolve em
diferentes universidades, é a ênfase na formação política das novas gerações. (Colaboraram
Alcione Nunes Farias, Adelson Lima, Sidevaldo Miranda Costa)
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/12398
21/03/2013
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