Cláudio Gonzalez*
Ao constituir sua própria Comissão da
Verdade, a UNE e os estudantes brasileiros juntam forças para romper o silêncio
de quase cinco décadas nubladas que paira sobre os jovens perseguidos,
torturados e mortos pela ditadura militar no país. A entidade também pretende
auxiliar nos trabalhos da comissão do governo
Os estudantes estiveram na linha de frente da
resistência à ditadura militar. Consequentemente, também figuraram entre as
principais vítimas da repressão dos militares contra os que lutavam pela
restauração da democracia. Muitos jovens foram assassinados e presos e, em
muitos casos, os corpos estão até hoje ocultados.
Para ajudar a esclarecer os fatos ocorridos neste
período trágico da história brasileira, as entidades estudantis, lideradas pela
União Nacional dos Estudantes (UNE) decidiram criar sua própria Comissão da
Verdade, a exemplo do que fez o governo federal.
A comissão do governo é formada por integrantes indicados pela presidente Dilma Rousseff e tem por objetivo apurar violações aos direitos humanos cometidas entre 1946 e 1988, período que inclui a ditadura militar.
O ato de lançamento a Comissão da Verdade da UNE
ocorreu na noite de 18 de janeiro último, no auditório da Universidade Federal
de Pernambuco (UFPE), em Recife, durante a abertura do 14º Conselho Nacional de
Entidades de Base (Coneb).
Além do lançamento da comissão, o ato teve a exibição de dois filmes que documentam a vida de jovens perseguidos e mortos durante a resistência à ditadura. Repare Bem, da diretora e atriz portuguesa Maria de Medeiros, traz revelações e relatos da família do militante Eduardo Leite, o Bacuri.
Já
Arquivo Honestino Guimarães, da diretora Paula Damasceno, conta a história do
líder estudantil Honestino Guimarães, preso, torturado e “desaparecido” no
início dos anos 1970. Com músicas de Tom Zé, do grupo Face da Morte, o curta
Arquivo Honestino Guimarães mistura depoimentos, imagens de arquivo, imagens
atuais, que revelam o caso de um dos 125 desaparecidos políticos da ditadura
militar no Brasil.
Trabalho conjunto
A Comissão da UNE irá não apenas apurar
desaparecimentos e crimes de lesa-humanidade cometidos contra estudantes, mas
pretende também ajudar nos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, instituída
pelo governo federal. A Comissão da UNE investigará, em princípio, o
desaparecimento de 46 ex-integrantes da entidade já levantado pela Comissão
Nacional da Verdade.
Prevista para ter de seis a 12 membros efetivos, a composição da Comissão ainda não está concluída. Daniel Iliescu, presidente da UNE, explica que a ideia é cada unidade do movimento estudantil que compõe a organização indicar representantes – entre estudantes de graduação e pós-graduação e pesquisadores – para compor os membros efetivos da Comissão.
Personalidades ligadas à luta em
defesa dos direitos humanos também irão compor o grupo. Estão confirmados para
a Comissão o presidente da Comissão da Anistia do Ministério da Justiça, Paulo
Abraão, como coordenador, o ex-ministro dos Direitos Humanos Paulo Vanucchi,
que deve ser o orientador dos trabalhos da Comissão estudantil, e ainda o
estudante Mateus Guimarães, sobrinho-neto de Honestino Guimarães.
Além desses, a investigação de cada caso agregará
nomes provisórios para ajudar a levantar informações e elaborar os relatórios
finais, que serão entregues à Comissão Nacional da Verdade. O grupo inicia
trabalho com apoio da Comissão de Anistia. “Queremos buscar documentos que
possam revelar o paradeiro dos estudantes desaparecidos, além de ouvir os
familiares deles [...] Este material vai gerar um arquivo para a própria UNE e
também será entregue para a Comissão da Verdade, a fim de ajudar a acelerar as
investigações”, diz Daniel.
“Nenhuma outra entidade perdeu mais membros
durante a ditadura militar do que a UNE, nenhuma outra entidade foi tão
perseguida. A UNE não poderia deixar de fazer parte deste momento da história
do Brasil, de consciência e de resgate do seu passado”, defendeu Daniel Iliescu
durante o lançamento da iniciativa em Recife.
A intenção da entidade é concluir os
trabalhos de pesquisa entre os meses de março e abril de 2014, um pouco antes
do término da Comissão do governo.
Entre os episódios a serem investigados, um dos
mais conhecidos é o Congresso da UNE em Ibiúna, em 1968, quando centenas de
estudantes que se dirigiram de maneira clandestina à cidade do interior
paulista acabaram descobertos, e alguns deles foram detidos por policiais.
Também será alvo de investigação o incêndio da sede da UNE no Rio de Janeiro,
no dia 1º de abril de 1964, ainda durante o processo do golpe. A UNE era tida
como um dos principais apoios do presidente João Goulart, deposto pelos
militares. Em 19 de maio de 2010, o Senado aprovou o reconhecimento da
responsabilidade do Estado no incêndio e autorizou a indenização de R$ 46
milhões para a entidade.
Honestino Guimarães, presente!
O primeiro caso a ser investigado é o de Honestino Guimarães, eleito presidente da entidade em 1971, que desapareceu após ter sido detido no Centro de Informações da Marinha, no Rio de Janeiro, em 10 de outubro de 1973. A intenção é apresentar um relatório sobre o caso no dia 28 de março, quando Honestino completaria 66 anos. A data também lembra o assassinato do estudante Edson Luís, morto em 1968 pela polícia durante uma manifestação no restaurante Calabouço, também no Rio.
Durante o lançamento da Comissão da Verdade da UNE, o brasiliense Mateus Guimarães, sobrinho-neto de Honestino Guimarães, recebeu homenagens em nome do tio.
Mateus Guimarães tem 27 anos de idade e, assim
como seu tio, foi estudante da Universidade de Brasília (UnB). Hoje, luta pela
reconstituição dos fatos como um sinônimo de justiça e liberdade. Para ele, a
Comissão da Verdade é só o início do processo de justiça. “A comissão nacional
da verdade está desencadeando esse processo de mobilização e diversas
instituições estão entrando nessa luta. Nesse cenário, a UNE é determinante.
A
UNE é a entidade que mais sofreu na ditadura militar e, de fato, a sua entrada
nesse processo traz um peso não só simbólico, mas político. Tenho certeza de
que a entidade vai realizar uma série de debates sobre o tema e vai lutar para
obter todas as informações. Vou colaborar com o que puder e o que for
necessário.
Esse dossiê que pretendemos entregar, após a abertura de todos os
arquivos, não só vai ser elemento propulsor da divulgação do desaparecimento do
Honestino em si, mas também vai ser instrumento de mobilização para outras
pessoas, para que mais familiares de mortos desaparecidos continuem se
movimentando”.
Ele destaca que muitos conhecem seu tio Honestino
como líder estudantil, um militante político envolvido, “mas o que os jovens
não conhecem muito é o Honestino ser humano. Para mim, sobretudo, ele foi um
grande exemplo. Desde adolescente escrevia poemas e já dava para perceber o
alto nível de sensibilidade, o sentimento de amor muito presente.
A dor do
outro era como se fosse a dor dele também. Foi exatamente essa qualidade, esse
sentimento de ser humano, que o levou a ser essa liderança estudantil. Ele
representa, sobretudo, um grande exemplo de ser humano, que cumpriu um papel
fundamental na resistência à ditadura”, diz Mateus.
Enquanto Mateus falava no ato de Recife, um
grande quadro com o rosto de Honestino Guimarães pintado, que estava pendurado
em cima do palco, se desprendeu e caiu na mesa dos palestrantes, à frente de
todos os convidados. O barulho marcante chamou a atenção e prendeu a respiração
de todos. O presidente da UNE, Daniel Iliescu, recolheu o quadro do chão e o
acomodou em uma cadeira ao centro dos convidados e as mais de mil pessoas
presentes no auditório bradaram em alto som: “Honestino Guimarães, presente!”.
O ex-ministro dos Direitos Humanos, Paulo
Vannuchi, líder estudantil preso durante a ditadura e também contemporâneo de
Honestino, lembrou que no Congresso da UNE de Salvador, em 1979, quando a UNE
foi recriada após a ditadura, foi deixada, propositalmente, uma cadeira vazia
em homenagem a Honestino. “Daniel Iliescu refaz aqui, de outra forma, aquele
gesto que também marca a história”, disse Vannuchi.
Mais que reparação
Em outro momento empolgante do ato de Recife, a vice-presidente da Comissão de Anistia Sueli Belato afirmou: “Estou muito emocionada. Nós estamos juntos aqui não porque vivemos uma longa e difícil noite, mas porque temos um projeto de vida em comum. Estamos num projeto de um país que não tolera injustiça, violência”.
Ela elogiou a iniciativa da Comissão da UNE e disse que a busca
pela verdade para as famílias das vítimas da ditadura vale mais do que a reparação
ou indenização da anistia. “A reparação ao Aldo Arantes foi o início de
retomada de um novo caráter de trabalho em dizer que os brasileiros não querem
só a reparação econômica. Nós sabemos que nós temos o maior programa de
reparação econômica, talvez do mundo, mas não é suficiente.
Nós construímos nos
estados as comissões estaduais contra tortura. Foram elas que começaram a
reportar a memória, a dizer o que aconteceu nas prisões e perseguições em
geral. As comissões especiais foram muito importantes. Até chegar à Comissão de
Mortos e Desaparecidos, até chegar à Comissão de Anistia foram muitos passos
que nós demos”, afirmou Sueli.
O ex-ministro Vannuchi foi além e disse que um
tema que não deve ficar bloqueado é o da punição dos torturadores. “Não é tarefa
da Comissão Nacional da Verdade e certamente o debate sobre isso será difícil
quando terminar o trabalho da Comissão.
Eu pessoalmente sustento que a nossa
autoridade política, intelectual e moral será maior se formos capazes de nos
desinteressar por qualquer ideia de prisão, mas conseguir que os que cometeram
os crimes assumam o que fizeram, peçam desculpas e se disponham a se engajar em
iniciativas para que isso nunca mais ocorra em nosso país”, afirmou Vannuchi.
“Um
dos maiores desafios da Comissão da Verdade, e desta que a UNE constitui agora,
é alcançar o diálogo, inclusive com as Forças Armadas, para que entendam que
num país democrático, que precisa de suas forças armadas, não pode mais haver
gestos de glorificação do golpe militar de 1964”, defendeu o ex-ministro.
Para
o presidente da Comissão Nacional de Anistia do Ministério da Justiça, Paulo
Abraão, a comissão criada pela UNE reforça a participação da sociedade no
processo de construção da memória e da verdade. “Essa ação vai possibilitar a
ampliação da participação nos trabalhos de reconstrução da memória, atingindo
inclusive as gerações mais jovens, o que atesta uma intensa participação da
sociedade neste processo”, disse Abraão.
Valores humanistas
O jurista Cláudio Fonteles, coordenador da Comissão Nacional da Verdade, emocionou-se durante o ato de lançamento da Comissão da UNE. “Honestino foi meu amigo, estudou comigo no ginásio. Tenho 66 anos, mas hoje voltou a mim um calor de 14”, afirmou. Fonteles disse em entrevista que está entusiasmado para solucionar todos os casos.
“Estamos mergulhados no arquivo nacional e lendo os
processos documentados para a reconstrução histórica. Essa reconstrução envolve
não só o aparato militar, mas todos os militantes da época, que foram
brutalmente torturados.
Agora mesmo, enquanto falo com vocês, estou com a pasta
aberta e refletindo em cima de uma documentação sobre a juventude do Araguaia,
movimento guerrilheiro existente na região amazônica brasileira, ao longo do
rio Araguaia, entre fins da década de 1970”, relata.
Em mensagem dirigida aos
participantes do Coneb, o jurista lembrou uma frase de Charles Chaplin: “O
ideal que sempre nos acalentou renascerá em outros corações”. Essa é a grande
esperança da juventude, que nunca deixa morrer os valores humanistas da nossa
sociedade.
*Da redação, com agências
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