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sexta-feira, 8 de março de 2013

OS RIOS DA HISTÓRIA




Walnice Nogueira Galvão

I  A Ópera de Pequim

O cinema da China, ressurgindo após o fim da Revolução Cultural, faria seu triunfal advento no circuito planetário nos anos 1990, com os espetaculares painéis ou murais realizados pelos diretores Chen Kaige e Zhang Yimou. Eles e alguns outros ganhariam o rótulo de “5ª. geração”, em atenção à longa história da sétima arte no país. Desde então os filmes chineses já receberam em seu conjunto cerca de trinta prêmios só nos três festivais mais importantes, os de Cannes, Veneza e Berlim.



Mais cineastas iriam surgindo e constituindo uma 6ª geração. Os novos assestaram suas câmeras sobre as transformações radicais das metrópoles, especialmente entre os jovens e seu confronto com os pais, antes impensável. Filmes baratos, com visada documental, autorais e intimistas, rejeitando o sopro épico que perpassa pelos da geração anterior.



Semelhante a essa oscilação estética entre formas épicas muralistas e a mutável realidade imediata foi o que se viu anos atrás, na Ópera de Pequim e na filmagem de suas encenações. Não é questão de pouca monta, num país que fez uma revolução comunista, onde uma vasta plebe, mantida em estado de servidão por milênios, conquistou seus direitos. A expressão artística maior do país era e é a Ópera de Pequim, uma combinação imemorial de teatro, música, canto, dança, mímica, artes marciais, malabarismo, acrobacia. Com rígidos protocolos e entrechos convencionais, fala de épocas lendárias, com reis, rainhas, intrigas palacianas, feiticeiros, animais antropomórficos. Uma de suas peças mais populares é O Rei Macaco Contra os Dezoito Santos Guerreiros, título que não devia andar longe dos ouvidos de Glauber Rocha quando fez O Dragão da Maldade Contra oSanto Guerreiro.



Embora passando pelo crivo que a transfiguração pela arte confere, a Ópera fornecia boas fatias da cultura chinesa, de suas mentalidades, de suas antigas hierarquias e cerimoniais. Mas se esmerava em focalizar um regime ultrapassado e mais do que iníquo. Muita gente se preocupou, cogitando que as conquistas políticas e sociais deveriam se expressar numa nova dramaturgia. E, sobretudo, que a Ópera devia abdicar de protagonistas aristocráticos e passar a representar o povo, com personagens em que o povo se reconhecesse e com estórias semelhantes às suas. Velha reivindicação do realismo socialista, que já enfrentara percalços, por exemplo, na União Soviética.

Templo Chinês
A ocasião surgiu e foi devidamente aproveitada. A Revolução Cultural, como se sabe, paralisou tudo, não só escolas mas também a Ópera de Pequim e outras óperas regionais. O país ficou em suspenso por dez anos, enquanto a tarefa de demolição prosseguia. Um dos mais interessantes feitos, tanto artístico quanto político, foi a recriação da dramaturgia destinada à Ópera. Enquanto isso, as montagens preexistentes corriam o risco de desaparecer, com perda de um patrimônio da humanidade de valor incalculável. 

Há registro de que oito espetáculos inéditos foram encenados e depois transformados em filmes, hoje no olvido, que se tornaram anátema. Nas biografias da Viúva Chiang, como ficou conhecida a última esposa de Mao Tsé-tung, credita-se a sua iniciativa e controle essa tarefa – mais do que tarefa, missão. Após a morte do marido, ela e mais outros três líderes, que tinham integrado a junta de governo da nação por um bom tempo, seriam condenados por formar a Camarilha dos Quatro; e tudo o que realizaram foi anulado. Ficaram impressas na memória as imagens do julgamento, que durou anos, com os réus tendo pendurados ao pescoço cartazes cheios de ideogramas detalhando seus crimes, e a desaforada Viúva Chiang que o tempo todo riu e xingou seus acusadores.



Tive oportunidade de assistir um desses oito filmes, O Oriente é Vermelho. Aspiração e plataforma, trazia o mesmo título da canção que o primeiro satélite espacial chinês emitia sem cessar, para irritação dos adversários. No melhor estilo da Ópera de Pequim, o filme contava uma história da revolução sintetizada em meia dúzia de quadros fortemente simbólicos e alegóricos. Era de uma beleza plástica incomparável, apesar de sua modernidade.



Quem se lembrar de um famoso quadro da Ópera tradicional há de entender este. Na tradicional, A Travessia do Rio sugeria uma canoa transpondo a correnteza, no palco nu, sem qualquer acessório. Dois personagens, o barqueiro e a passageira, através da linguagem corporal, viviam e davam a sentir os apuros da situação, com a canoa arriscando naufrágio várias vezes, mudando de posição, girando sobre si mesma, ambos equilibrando-se precariamente e quase caindo na água. Um prodígio de mímica. O quadro mais impressionante do novo filme também era uma travessia de rio, celebrando um episódio da Longa Marcha.

Não havia preocupação verista, a encenação apostava no artificialismo, a água do rio não fluía e as montanhas eram pintadas. Homens e mulheres, rompendo grilhões, portavam descomunais bandeiras vermelhas, que, objeto de malabarismo, faziam turbilhonar em todas as direções. Camaradas tombavam pelo caminho, levando às lágrimas quem assistia e recordava seus mortos em lutas similares. 

O filme terminava por mais um recurso anti-ilusionista, com a câmera apeando do palco, focalizando a plateia apinhada e subindo para um close na estrela vermelha do teto do teatro: só aí o espectador percebia estar em meio a uma récita da Ópera de Pequim. Quando as luzes se acenderam no cinema da Universidade do Texas em Austin, a plateia, composta de estudantes chineses, aplaudiu calorosamente.



Reaberta após o término da Revolução Cultural, a Ópera de Pequim continua apresentando apenas os entrechos ancestrais, seja em São Paulo, Paris ou Pequim. A modernidade e os problemas do povo ficaram de fora, o patrimônio da humanidade está preservado: pena que as duas vertentes não pudessem coexistir.



Em Adeus minha concubina, o título do filme alude ao quadro da Ópera em que o imperador, às vésperas da batalha em que será derrotado, despede-se de sua favorita, ambos cantando um dueto. Centrado na amizade de dois meninos aprendizes de ator, o filme mostra como aquele que se especializaria na concubina, com sua voz de falsete, ficaria sem trabalho durante os dez anos da Revolução Cultural. E quando, finalmente, a Ópera é reaberta e ele pode retomar seu papel, tinha perdido a voz, e por isso se suicida, degolando-se em cena. Ato simbólico de mais essa tragédia que engolfara a China e que O Oriente é Vermelho, no esplendor de sua beleza,encarnara em momento de triunfo.





II Cinema chinês



  
O filme acima mencionado, O Oriente é Vermelho (1965), foi dirigido por Ping Wang,tendo em chinês o título de Dongfang Hong e em inglês o deThe East is Red. Um musical, apresenta uma súmula altamente estilizada e teatral da história da Revolução Chinesa e das origens da República Popular da China. Épico de música e dança, construído numa sucessão de quadros. termina ao som  da Internacional.



Os diretores Chen Kaige e Zhang Yimou, primeiros da chamada “5ª. Geração” a ter sucesso internacional e a ganhar prêmios nos maiores festivais, pertencem ao grupo gerado pela Escola de Cinema de Pequim após o fim da Revolução Cultural. Adeus, minha concubina (1993), a supracitada obra de Chen Kaige, foi o primeiro deles a estourar em escala planetária, arrebatando a Palma de Ouro em Cannes. 

O entrecho acompanha a trajetória de dois garotos fazendo carreira como atores na Ópera de Pequim. O pano de fundo, constituído pela história da China no século XX, expõe suas estonteantes reviravoltas: a invasão japonesa, a revolução comunista, a Revolução Cultural, a abertura subsequente.



Outro filme digno de nota do mesmo Chen Kaige é O imperador e o assassino (1999). Reconstitui a magnífica saga da fundação do império chinês, quando Qin Shihuangdi encerrou a fase dos Reinos Combatentes (474-221 A.C.), subjugando-os e fundando a China. O imperador é mais conhecido pelo exército de 6 mil soldados que mandou moldar para guardar seu túmulo, em Xian. A suntuosidade na reconstrução do luxo da corte chinesa na Cidade Proibida, situada na Praça da Paz Celestial em Pequim, é sem par.  Mais tarde, Herói, de Zhang Yimou (2002), transformaria o protagonista assassino em mártir autoimolado pela unidade da China.



Nessa leva, O tigre e o dragão (China/ Taiwan/ Hong Kong/ USA, 2000), dirigido por Ang Lee, chinês de Taiwan radicado nos Estados Unidos, produz uma “ópera chinesa”, uma mistura típica de drama, dança, canto, mímica, acrobacia e malabarismo. O filme se abebera no manancial inesgotável e imemorial das legendas chinesas que envolvem artes marciais, vida monástica e contemplativa, amores impossíveis e espadachins, no caso mulheres. Com Chow Yun Fat, ator popular em toda a Ásia, Michelle Yeoh e Zizi Zhang. Tem música de Yo Yo Ma e ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro.



O diretor Zhang Yimou é o responsável por Lanternas vermelhas (1991).

Centra-se na crueldade das relações entre as quatro esposas de um polígamo, que nunca aparece, enquanto o poder que dele emana as manipula e destrói. O diretor investiga a condição feminina neste e em outros filmes, como Uma mulher chinesa (1992), em que a protagonista é uma camponesa grávida; ou Nenhum a menos (1999), em que ela é uma professora adolescente exercendo suas funções no meio rural; O Clã das Adagas Voadoras (2004), em que ela é uma espadachim.  Lanternas vermelhas foi agraciado com o Leão de Prata em Veneza.



Neste rol de obras do cinema chinês, não se pode esquecer China (1972), dirigido por Michelangelo Antonioni, famoso documentário em três partes e várias horas, recentemente restaurado em DVD. O diretor privilegia o cotidiano ao escolher um foco interno e mergulhar nas diferentes facetas do país: campos, cidades, fábricas, hospitais, sedes do partido, cantinas, escolas, concentrando-se no rosto das pessoas. Filmado durante a Revolução Cultural. Documento único e valioso, raro testemunho de uma China vista por dentro por um grande cineasta estrangeiro.



E por falar em cinema chinês, lembremos de um filme norte-americano, A Múmia – Tumba do Imperador-Dragão (2008), dirigido por Rob Cohen. Um filme fraco como este, o terceiro da franquia e reles imitação de Indiana Jones, deixa aparentes as intenções reais, talvez não conscientes. O herói branco trata de impedir que o Imperador Han (“Povo Han” é como os chineses se autodenominam) ressuscite com todo o seu exército de terracota, porque destruiria o mundo. Clara simbolização do despertar da China e sua transformação em potência, ameaçando a hegemonia americana.



Uma tal transformação é objeto do novo cinema voltado para o contemporâneo, e conta com alguns títulos interessantes. Summer Palace (2006), dirigido por Lou Ye, procede à ficcionalização dos eventos da Praça de Tianamen ou Da Paz Celestial, a simbólica praça central de Pequim, sede do poder por milênios, para a qual se abre o palácio imperial da Cidade Proibida com seus 9 mil aposentos. Ali fica o túmulo de Mao Tse-tung. Em 1989, um grupo de estudantes acampou na praça e reivindicou liberdade, mas a tentativa acabaria em massacre. Um dos ícones do século XX viria a ser a extraordinária imagem, filmada e fotografada, de um jovem solitário impedindo com seu corpo o avanço de um tanque de guerra. O feito do diretor valeu-lhe cinco anos de censura oficial.



Em Spring Fever (2009), o mesmo diretor mostra mais uma vez sua vocação para mexer em vespeiro. Não contente com os anos de proibição de suas atividades profissionais que amargou após Summer Palace, aborda outro tema tabu na China: a homossexualidade. Ao apresentá-la com naturalidade, sem esconder a repressão que sobre ela paira no país e os conflitos que gera, criou novamente problemas para si mesmo. Mas ganhou reconhecimento internacional, ao obter o prêmio para melhor roteiro no festival de Cannes de 2009.



Uma contribuição importante é Banhos (1999), dirigido por  Zhang Yang. Centralizado no conflito de gerações, focaliza os embates entre pai e filho no curioso ambiente passadista dos banhos públicos e sua sociabilidade masculina. Esses banhos têm sido derrubados por toda parte num país em ininterrupto devir, mas consta que o filme deu visibilidade e importância àquele que constituiu seu cenário, e que por isso foi preservado.



Considerado como o líder dos diretores da última geração, Jia Zhang-Ke tem em seu currículo Inútil, Pickpocket, Plataforma, Prazeres Desconhecidos. Merece destaque Em Busca da Vida (2006), que assesta uma câmera inclemente mas empática sobre o que a modernização da China está causando aos seres humanos: destruição de cidades com 2.600 anos, de laços pessoais, de modos de vida tradicionais. Duas pessoas deslocadas em busca de seus cônjuges, de que estão separados há muito tempo, em meio à construção da monumental Barragem das Três Gargantas, no Rio Yangtzé, a maior hidrelétrica do mundo. Ganhou o Leão de Ouro no festival de Veneza de 2006. 



Outro filme italiano, afora o de Antonioni, também pode tratar da China, como  é o caso de A Estrela Imaginária  (La stella che non c´è) (2006), dirigido por Gianni Amelio. Um engenheiro italiano da indústria siderúrgica descobre falha na concepção da caldeira que fabrica e que foi largamente exportada. Dirige-se à China e, com a ajuda de uma intérprete, parte em busca da caldeira defeituosa nos confins do país. Em sua trajetória pelos meios operários, é ajudado pela intérprete que também procura definir seu itinerário existencial em meio aos valores cambiantes que confrontam a sociedade chinesa.



Afora os supracitados, mais um filme de Jia Zhang-Ke, O mundo (2004), passa-se num parque temático de Pequim, com reproduções das principais atrações do planeta: a Torre Eiffel e o Arco do Triunfo de Paris, as Torres Gêmeas de Nova York, as pirâmides e a Esfinge do Egito, e assim por diante. Também oferece shows musicais imitando os de Las Vegas e da Broadway, com atores fantasiados como coristas ou como personagens históricos do Ocidente. O entrecho joga com o grande contingente de jovens que lá trabalha, suas aspirações, seus amores, suas dificuldades em desprender-se de um passado tradicional, nesse patético simulacro do Ocidente, filtrado por uma visão crítica.



Voltados para tempos idos ou aderidos ao imediato, em conjunto os filmes apresentam uma profusão de histórias que conferem frescor e  vibração ao cinema chinês da atualidade.



Walnice Nogueira Galvão – Professora Emérita da FFLCH-USP

Fonte:http://editora.expressaopopular.com.br

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