Ruy
Sposati de Campo Grande (MS) da Campanha Guarani
“Aqui perdi marido, dois filhos, um neto e uma tia. Agora, mais um neto”, lamenta liderança do tekoha Apyka’i, às margens da BR-463 (na foto, Gabriel aparece coçando a cabeça) |
Uma criança Guarani-Kaiowá de quatro anos morreu
atropelada na noite desta sexta-feira, 22. Ela morava no acampamento indígena
Apyka’i, a sete quilômetros do centro de Dourados (MS), às margens da rodovia
BR-463. O motorista do veículo fugiu do local sem prestar socorro a criança, e
ainda não foi identificado.
Cerca de um mês antes, um indígena do tekoha foi
atropelado por uma moto, que também não parou para prestar socorro. De
bicicleta e acompanhado da esposa grávida, vinha caminhando pelo acostamento,
quando foi atingido por uma motocicleta. “Me acertou e não parou, e entrou
dentro da fazenda”, relata o homem, que está com pinos na perna fraturada.
Desde 2009, quando foram expulsos do território que
tradicionalmente ocupavam, seis pessoas da comunidade faleceram – cinco por
atropelamento. Todos parentes da principal liderança da comunidade, a Kaiowá
Damiana Cavanha.
Ela explica que o nome do tekoha (aldeia), Apyka’i,
em Guarani, signfica “banco pequeno”, “banquinho”. Para os Kaiowá, é no apyka’i
que a criança fica sentada durante os nove meses de gestação. Mas o tom
acalentador fica só no nome – dentro ou fora do feto, a realidade tem sido o
desalento puro do genocídio, e o banco é um mero trecho de terra entre o
asfalto e as cercas da fazenda.
Indígenas rezam onde estão enterradas vítimas de atropelamento (Foto: Ruy Sposati/Cimi) |
“Aqui perdi meu marido, dois filhos, um neto e uma
tia. E agora mais um neto”, lamenta Damiana. A morte da tia decorreu de
contaminação por agrotóxicos utilizados nas plantações das fazendas que
circundam a área.
A liderança relembra o episódio: “minha tia velhinha tava no
meio da plantação de trigo, sozinha lá. O avião passou três vezes jogando
veneno. Meu filho correu pra me avisar. De noite, três da manhã, minha tia
morreu. O cheiro muito forte, tia não aguentou, não. Morreu”. Segundo moradores
da comunidade, o uso de agrotóxicos é recorrente. “Eles jogam muito veneno
aqui. A última vez [o avião] passou de noite. Graças a Deus ninguém morreu
[dessa vez]“.
Todos os outros mortos foram vítimas de
atropelamento. “Meu marido morreu aqui também. Ali, quando passa a ponte
[aponta]. Morreu na hora. Enterramo aqui também. Ele tava de bicicleta.
Bicicleta amassou tudo. O guri tava junto. O guri não morreu não, graças a
Deus. Machucou só um pouquinho”, conta. “Perdi dois filhos. Dois guerreiros.
Também atropelados. Esse ano. Um morreu numa semana, 15 dias depois morreu o
outro”. Além dos dois filhos, Damiana também perdeu dois netos – a quem ela se
refere igualmente como filhos -, vítimas de atropelamento.
Histórico
Segundo Damiana, as famílias de Apyka’i, também conhecida
por Curral de Arame e Jukeri’y, estão acampadas há 14 anos às margens da
BR-463, no trecho que liga os municípios de Dourados e Ponta Porã, na fronteira
do Brasil com o Paraguai.
“Aqui nós somos 15 pessoas. Quando morava dentro da
área, eram 130. Aí saiu, saiu… Foram indo para Kaarapó, Jaguapiru, Bororó,
Nhuporã…”, conta Damiana.
Já houve duas tentativas de retomada do território
originário, ocupado atualmente por grandes fazendeiros. A última ocorreu em
junho de 2008. Os indígenas ocuparam uma pequena parte da Fazenda Serrana,
próximo à mata da Reserva Legal da área, estabelecendo pequenas roças.
No período em que ficaram acampados ali, foram
vigiados por uma empresa particular de segurança. A Funasa e Funai foram
impedidas de prestar atendimento.
A ocupação durou até abril de 2009, quando a
Justiça determinou a reintegração de posse em favor do fazendeiro. Desde então,
o grupo está acampado à beira da rodovia.
Com a expulsão das terras, os índios foram
obrigados a ocupar a outra margem da BR 463, por causa das obras de duplicação
da rodovia. Cerca de vinte pessoas formaram o acampamento, onde foram
construídos seis barracos.
Um dos maiores problemas dos indígenas de Apyka’i é
a obtenção de água potável. Atualmente, eles se valem da água poluída de um
córrego para beber, cozinhar e para higiene pessoal.
Um relatório do MPF-MS sobre a situação da
comunidade de Apyka’i, publicado em 2009, afirmou que “crianças, jovens,
adultos e velhos se encontram submetidos a condições degradantes e que ferem a
dignidade da pessoa humana. A situação por eles vivenciada é análoga à de um
campo de refugiados. É como se fossem estrangeiros no seu próprio país”.
Ataque
Barracos incendiados (Foto: Arquivo Cimi) |
Em setembro de 2009, um grupo armado atacou o
acampamento, atirando em direção aos barracos. Um Kaiowá de 62 anos foi ferido
por tiros, outros indígenas agredidos e barracos e objetos foram queimados.
Damiana conta que o ataque, realizado a mando dos
fazendeiros, ocorreu já depois que os indígenas foram despejados da área, e que
teve relação com o uso da água de um córrego que fica dentro da área da
fazenda. “Queimou barraco, roupa, queimou celular, bicicleta, tudo. Logo depois
do despejo. Fizeram isso porque a gente queria pegar água, a gente pediu
licença. Mas o seguranças [da fazenda] não deixam não”.
O ataque ocorreu por volta da 1h da madrugada,
quando o grupo de índios dormia no acampamento improvisado construído no dia
anterior na altura do km 10 da Rodovia BR-463, ao lado da Fazenda Serrana.
A fazenda
Segundo apuração da ONG Repórter Brasil, a
propriedade foi arrendada para o plantio de cana-de-açúcar pela Usina São
Fernando. A usina, por sua vez, é um empreendimento da Agropecuária JB (Grupo
Bumlai) com o Grupo Bertin, um dos maiores frigoríficos da América Latina.
Instalada em Dourados (MS) em 2009, a Usina São
Fernando é tocada por uma parceria da Agropecuária JB (Grupo Bumlai),
especializado em melhoramento genético de gado de corte, e o Grupo Bertin, um
dos maiores frigoríficos produtores e exportadores de itens de origem animal
das Américas.
Na época, procurado para comentar o ataque aos
indígenas, o Bertin, através de sua assessoria de imprensa, afirmou que “os
seguranças da usina [São Fernando] não andam armados e não se envolveram em
nenhum conflito. Não temos nenhuma notícia em relação ao fato e estamos
apurando a informação. A Usina São Fernando não é proprietária de nenhuma terra
na região”.
Já o diretor-superintendente da Usina São Fernando,
Paulo César Escobar, confirmou que “existe um contrato de parceria agrícola
entre a Usina e a Fazenda Serrana, ou seja, a usina planta cana na área de
fazenda e divide os frutos com o proprietário”.
Ele teria sido informado que “o
conflito não ocorreu na área de plantio de cana (onde ocorre a parceria com a
Usina São Fernando), mas em outra parte da fazenda”, o que contraria o parecer
emitido pela Funai. O diretor também negou qualquer relação com a Gaspem, que
teria sido contratada pelo proprietário da Fazenda Serrana. A Gaspem também foi
procurada pela Repórter Brasil na época, mas não houve quem se manifestasse
pela empresa.
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/12437
25/03/2013
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