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sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

BONECAS NEGRAS ENSINAM A COMBATER O RACISMO BRINCANDO

No circuito das grandes lojas de brinquedos são raras as bonecas negras. E quando estão presentes, geralmente trazem traços característicos de pessoas brancas, alterando apenas a cor da pele
Daniele Silveira de São Paulo (SP)
O racismo e a vontade de se ver representada levaram Ana Júlia dos Santos a usar sua arte como forma de expressar as especificidades da população negra brasileira. Há 15 anos, a artesã faz bonecas negras, que subvertem o estereótipo “nega maluca” e fornecem novas armas para o combate ao preconceito.
Ana Fulô, como é conhecida, conta que foram poucos os brinquedos durante sua infância, mas lembra de “nunca ter tido uma boneca negra”. Talvez, mais marcante do que a falta de referências ainda quando pequena tenha sido o relato de uma de suas netas sobre um trabalho de escola em que deveria montar uma “bonequinha”.
“A professora disse ‘Agora quando você fi zer a boneca negra, você põe um pedaço de Bombril [esponja de aço] para imitar o cabelo dela’. Ouvi esse relato da minha neta. A minha filha ficou mal, se dirigiu à professora e questionou isso. Foi retirado o trabalho. Não foi feito mais.”
Coincidentemente, com a experiência de racismo vivida pela neta, Fulô explica que procurou uma feira para expor seu artesanato, mas não havia mais vagas. Então, a coordenadora do espaço sugeriu que ela fizesse bonecas negras, pois a artesã que desenvolvia esse trabalho havia falecido. Neste encontro de situações, Fulô deparou-se com a oportunidade de expressar sua identidade e combater o racismo.
“Eu notei que as meninas negras brincam com as bonecas brancas, mas nem sempre as meninas brancas brincam com as bonecas negras. Então, eu quis tirar aquela maneira da pessoa tratar a boneca negra como a ‘nega maluca’. Eu quis fazer as meninas bonitas. Então, eu comecei a trabalhar nesse sentido até para elevar a autoestima das nossas crianças e mostrar para elas que os brinquedos delas podem ser tão ou mais bonitos que os outros.”
Olhos claros, pele escura
No circuito das grandes lojas de brinquedos são raras as bonecas negras. E quando estão presentes, geralmente trazem traços característicos de pessoas brancas, alterando apenas a cor da pele. Dessa forma, fabricantes de brinquedos não se intimidam em apresentar bonecas negras com olhos verdes ou, ainda, reforçar preconceitos com a reprodução de estereótipos.
Artesã e professora do Ensino Fundamental, Lúcia Makena faz bonecas negras há mais de dez anos. Ela avalia que o mercado formal de brinquedos não demonstra interesse em conhecer e representar a população negra.
“A indústria, eu acredito que quando ela faz uma boneca negra, ela não está muito preocupada com a questão da identidade e da cultura. Eu acho que eles só colocam tinta marrom e pronto, né. E a preocupação que eu acho que as empresas deveriam ter é de pensar quem é esse povo negro, qual é essa cultura, qual o seu modo de ver a vida, o que é importante para eles, e eles [as empresas] não se preocupam com isso.”
Arte-educadora, Lúcia ainda destaca a importância do trabalho para a educação das crianças na questão da diversidade étnico-racial. “Eu acredito que os brinquedos fazem parte desse processo de formação das crianças. Então, você tem que fazer bonecas contemplando as etnias. Não pode a criança passar a vida inteira comprando bonequinhas loiras, loiras, loiras, se muitas vezes elas não são loiras e muitas vezes elas não vão se identifi car com aquilo. Vai trazer uma impressão de que a sua referência de beleza é outra.”
Brincadeira séria
Assim como Makena, Fulô considera fundamental a função educacional dos brinquedos. “Nenhuma criança nasce preconceituosa. Isso é coisa que vão colocando na cabecinha dela. Eu acho que a partir do momento que ela começa a brincar, ela tem um entendimento da diversidade de raça. Coloca as duas para a criança brincar, se a gente percebe que ela não integra a boneca negra nas brincadeiras, então, ali tem algum problema. Aí é que se começa a trabalhar a cabecinha da criança.”
Para Fulô, mais do que bonecas, suas criações são personagens que possuem histórias próprias. Juntamente com a arte do desenvolvimento de cada novo molde, roupas e outros adereços que acompanham suas meninas, ela pensa  também na identifi cação de cada boneca. Assim, costuma presentear quem compra seu trabalho com textos sobre o que ela imagina para cada menina.
26/12/2013

Foto: Daniele Silveira

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

A DÍVIDA BRASILEIRA E O PARADOXO DA DESIGUALDADE



“A dívida brasileira alcançou R$ 3,6 trilhões ou 82% do PIB”, destaca a auditora fiscal Maria Lúcia Fattorelli.

O endividamento público de vários países gerou o que a coordenadora da organização brasileira Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lúcia Fattorelli, denomina de “sistema da dívida”, ou seja, a “utilização do endividamento público às avessas; em vez de servir para aportar recursos ao Estado, o processo de endividamento tem sido um instrumento de contínua e crescente subtração de recursos públicos, que são direcionados principalmente ao setor financeiro privado”.

Segundo ela, a dívida pública é, atualmente, “um dos principais alimentos do capitalismo, especialmente na atual fase de financeirização global, e favorece a concentração de renda no setor financeiro, aumentando ainda mais o seu poder”. E dispara: “O Sistema da Dívida opera de modo similar nos diversos continentes, fundamentado no enorme poder do setor financeiro, em âmbito mundial, o que lhe possibilita exercer seu controle sobre as estruturas legais, políticas, econômicas e de comunicação de países, gerando diversos mecanismos que viabilizam esse esquema”.

Na entrevista a seguir, a auditora fiscal também comenta a dívida dos estados brasileiros, a qual foi gerada de “forma espúria” e “passou a crescer em escala exponencial.

Maria Lúcia Fattorelli


IHU-on line - O que é Sistema da Dívida? Como e por que ele se reproduz em vários países do mundo? 

Maria Lúcia FattorelliEscolhemos o tema “Sistema da Dívida” para nortear todos os debates do seminário internacional que realizamos na semana passada devido à importância da percepção da atuação desse esquema em vários países.

O “Sistema da Dívida” corresponde à utilização do endividamento público às avessas, ou seja, em vez de servir para aportar recursos ao Estado, o processo de endividamento tem sido um instrumento de contínua e crescente subtração de recursos públicos, que são direcionados principalmente ao setor financeiro privado.

Esse esquema funciona por meio de diversos mecanismos que geram dívidas, na maioria das vezes sem qualquer contrapartida, e promovem seu contínuo crescimento. Para operar, tal sistema conta privilégios legais, políticos, econômicos e também com a grande mídia, além de contar com o suporte dos organismos financeiros internacionais para impor medidas que favorecem a atuação do “Sistema da Dívida”. O livro Auditoria Cidadã da Dívida: Experiências e Métodos, que lançamos durante o seminário internacional, detalha tais mecanismos, cabendo ressaltar os esquemas de “salvamento de bancos”, a transformação de dívidas privadas em dívidas públicas e a aplicação de “Planos de Ajuste Fiscal”, que se fundamentam em cortes orçamentários, privatizações e demais reformas liberais para destinar os recursos ao “Sistema da Dívida”

IHU-on line - Como o Sistema da Dívida funciona internacionalmente? Todos os países são afetados por esse sistema?

Maria Lúcia Fattorelli  - As experiências de auditoria já realizadas têm demonstrado que o “Sistema da Dívida” segue um modus operandi semelhante em diversos países, passando por fases permeadas de fatos graves, tais como: geração de dívidas sem contrapartida alguma ao país ou à sociedade; aplicação de mecanismos meramente financeiros (taxas de juros abusivas, atualização monetária automática, cobrança de comissões e taxas etc.), que fazem a dívida crescer continuamente, também sem qualquer contrapartida real; refinanciamentos que empacotam dívidas privadas e outros custos que não correspondem à entrega de recursos ao estado, provocando elevação ainda maior no volume do endividamento e beneficiando unicamente o setor financeiro privado nacional e internacional; utilização do endividamento gerado dessa maneira como justificativa para a implementação de medidas macroeconômicas determinadas pelos organismos internacionais (principalmente FMI e Banco Mundial) contrárias aos interesses coletivos e que mais uma vez beneficiam unicamente o mesmo setor financeiro, tais como privatizações, reforma da previdência, reforma trabalhista, reforma tributária, medidas de controle inflacionário, liberdade de movimentação de capitais etc.

A dívida pública é um dos principais alimentos do capitalismo, especialmente na atual fase de financeirização global, e favorece a concentração de renda no setor financeiro, aumentando ainda mais o seu poder. Por isso, o endividamento é um problema presente em quase todos os países capitalistas.

 Além de atentar para o volume da dívida, é preciso observar o valor dos juros que dirão o peso dessa dívida para cada país. Nesse sentido, o endividamento brasileiro é o mais oneroso do mundo, devido às elevadíssimas taxas de juros.

IHU-on line - Qual a situação da dívida pública brasileira? Que percentual do orçamento federal é destinado ao pagamento da dívida?

Maria Lúcia Fattorelli  - Os números da dívida pública brasileira indicam que já estamos em situação de crise da dívida. Em 31/12/2012, a Dívida Externa alcançou 442 bilhões de dólares (R$ 884 bilhões a R$ 2,00). É verdade que a maior parte dessa dívida é privada, porém, possui a garantia do governo brasileiro e, dessa forma, constitui uma obrigação que deve ser computada em sua integralidade.

Por sua vez, a chamada Dívida Interna atingiu o patamar de R$ 2,8 trilhões em 31/12/2012. A maior parte dessa dívida está nas mãos de bancos nacionais e internacionais. Dessa forma, a dívida brasileira alcançou R$ 3,6 trilhões ou 82% do PIB.

IHU-on line - Como essa dinâmica ocorre internamente entre os estados brasileiros e a União? Qual é o estado brasileiro mais endividado?

Maria Lúcia Fattorelli  - O Sistema da Dívida se reproduz também internamente, tendo em vista que, no caso dos estados, quase toda a dívida não possui contrapartida real e cresce a partir de mecanismos meramente financeiros.

A maior parcela da dívida dos estados corresponde ao refinanciamento feito pelo governo federal a partir do final da década de 1990 (com base na Lei nº 9.496/97). Esse refinanciamento englobou passivos de bancos estaduais que seriam privatizados (PROES), ou seja, transformou parcelas de diversas naturezas em dívida pública dos estados. Tal fato evidencia a ausência de contrapartida de tais “dívidas” que foram geradas em processo não transparente e questionável sob todos os aspectos e comprova a atuação do “Sistema da Dívida”.

Além disso, existem vários questionamentos acerca da origem da dívida refinanciada, conforme detalhamos no livro Auditoria Cidadã da Dívida dos Estados, que lançamos em maio deste ano. Além de gerada de forma espúria, essa dívida passou a crescer em escala exponencial devido à extorsiva remuneração nominal cobrada pelo governo federal, correspondente à incidência de atualização monetária mensal automática calculada com base na variação do IGP-DI, cumulativa com a incidência de juros de 6 a 9% ao ano.

Essa remuneração nominal tem sido tão abusiva que diversos entes federados estão contraindo empréstimos junto ao Banco Mundial e bancos privados internacionais para pagar ao governo federal. Uma verdadeira aberração e ofensa ao Federalismo, além do risco de transferir a crise financeira para o interior do país. Isso porque tais bancos internacionais exigem, entre outras condicionalidades, a transformação do sistema previdenciário estadual para a modalidade de fundos de pensão de natureza privada, que investem fortemente em derivativos – papéis podres que provocaram a crise financeira nos Estados Unidos e Europa. O estado brasileiro mais endividado é São Paulo.

IHU-on line - Quais são os impactos sociais e econômicos do Sistema da Dívida?

Maria Lúcia Fattorelli  - Como antes mencionado, o Sistema da Dívida opera de modo similar nos diversos continentes, fundamentado no enorme poder do setor financeiro, em âmbito mundial, o que lhe possibilita exercer seu controle sobre as estruturas legais, políticas, econômicas e de comunicação de países, gerando diversos mecanismos que viabilizam esse esquema.

Ao final, o custo da dívida pública é transferido diretamente para a sociedade, em particular para os mais pobres, tanto por meio do pagamento de elevados tributos incidentes sobre tudo o que consomem, quanto pela ausência ou insuficiência de serviços públicos a que têm direito – saúde, educação, assistência social, previdência – e, ainda, entregando patrimônio público mediante as privatizações e a exploração ilimitada de riquezas naturais, com irreparáveis danos ambientais, ecológicos e sociais. O custo social é imenso.

O gráfico do orçamento federal evidencia que, na medida em que absorve quase a metade dos recursos, todas as áreas sociais ficam prejudicadas, o que explica o paradoxo inaceitável que existe em nosso país: sétima economia mundial e um dos países mais injustos do mundo, desrespeitando direitos humanos fundamentais, como denuncia a inaceitável classificação em 85º lugar segundo o IDH medido pela ONU.

É necessário conhecer que dívidas os povos estão pagando. A auditoria é a ferramenta que nos permite conhecer e documentar este processo. O papel da cidadania é de suma relevância, pois além de conhecer o processo, deve procurar incidir nessa realidade. Não pode estar passiva diante do contínuo e crescente escoamento de recursos públicos orçamentários, acompanhado da entrega de riquezas nacionais de forma infame.

É necessário fundamentar – com documentos e provas – as denúncias desse vergonhoso esquema que tem submetido países e povos a uma escravidão incompatível com a situação econômica real, suficiente para garantir vida digna e abundante para todas as pessoas. Assim, a auditoria cidadã se converte em uma ferramenta de luta social. Convido a todos a divulgar nossas publicações e participar dos Núcleos da Auditoria Cidadã.


Maria Lúcia Fattorelli é auditora fiscal e coordenadora da organização brasileira Auditoria Cidadã da Dívida. Foi membro da Comissão de Auditoria Integral da Dívida Pública –CAIC- no Equador em 2007-2008. É autora de Auditoria da dívida externa. Questão de Soberania (Contraponto Editora, 2003).

http://www.brasildefato.com.br/node/26715
26/11/2013
Foto: Agência Senado

domingo, 24 de novembro de 2013

CONSCIÊNCIA NEGRA E HUMANA



Passaram-se os anos e o negro brasileiro ainda trás no lombo a marca do chicote da escravidão. A dicotomia entre casa grande e senzala, permanece. 

Os números são gritantes. Segundo DIEESE, os negros representam 48,2% dos trabalhadores nas regiões metropolitanas brasileiras, entretanto, a média de seu salário chega a ser 36,1% menor do que a de trabalhadores não negros.

Gustavo Menon
 
Em um país onde o paladino do humor, Danilo Gentili, oferece bananas aos seus críticos, o dia da consciência negra serve de reflexão.

O discurso do humorista segue a mesma lógica racista dos senhores de engenho: Gentili fala grosso (ou faz piada) com quem é subalterno e, por outro lado, fica manso quando está diante de coronéis, generais e gente graúda.

 Há muito preconceito entre nós. A explicação pra isso só nos remete a formação histórico-política na terra brasilis.

Lembremos que nosso querido país foi uma das últimas nações do mundo a extinguir oficialmente a escravidão, somente no final do século XIX, em 1888. Com uma velocidade digna de Rubens Barrichello (do Braziiuuu!), a inserção do negro na sociedade tupiniquim nunca foi uma prioridade.

Na transição de Monarquia para República, por exemplo, não houve mudanças significativas nas estruturas de poder. Juntamente a isso, a abolição da escravatura se deu sem indenizações, reforma agrária e direitos elementares.

Sob o cenário do tronco e do açoite, para o negro, apenas, marginalização e a máxima exclusão.  Dizia-se, naquela época, que os negros deviam ser tratados com os três "P": pão, pano e pau. Por isso, apesar da “obrigação” de vestir e alimentar os escravos, seus proprietários tinham pleno direito de castigá-los.

Passaram-se os anos e o negro brasileiro ainda trás no lombo a marca do chicote da escravidão. A dicotomia entre casa grande e senzala, permanece. Os números são gritantes. Segundo DIEESE, os negros representam 48,2% dos trabalhadores nas regiões metropolitanas brasileiras, entretanto, a média de seu salário chega a ser 36,1% menor do que a de trabalhadores não negros.

Outro dado alarmante é o extermínio da juventude negra nas periferias das cidades.  Foram registrados assassinatos de quase 35 mil negros no ano de 2010, conforme aponta estudo sobre violência da Faculdade Latino-Americana.

 A pesquisa que monitora informações da violência no Brasil aponta que de 2001 até 2010, enquanto a morte de jovens brancos no país caia 27,1%, a de negros crescia 35,9%. Em matéria de saúde, de acordo com estudo do Comitê Técnico de Saúde da População Negra do Ministério da Saúde, 41,5% das mulheres negras com mais de 40 anos nunca fizeram mamografia - contra 26,7% das mulheres brancas com a mesma idade.

Fizemos/fazemos pouco para combater a dominação. Existem avanços, claro; mas tal mentalidade retrógada e arcaica, herdada de nossas classes dominantes, permanece enraizada no seio da sociedade brasileira. É certo que alguns ainda sentem falta da chibatada.  Não é exagero dizer quea herança de quase quatro séculos de escravidão ainda encontra-se manifesta na população negra.

Os resquícios abomináveis de outrora estão por aí: em Gentilis, Pondés, Azevedos e em outros porta-vozes da grande mídia.

Contudo, a cultura afro resiste. As comunidades quilombolas estão na luta pelo reconhecimento de seus direitos. As religiões afrodescendentes permanecem, em meio a perseguições de grupos religiosos radicais, sendo expoentes de liberdade e resistência.

Zumbi, mártir dos Palmares, permanece vivo no imaginário do movimento negro.

Que o dia da consciência negra, sirva, ao menos, para reflexão e luta - uma vez que igualdade racial está longe de ser alcançada. 

Por fim, um sorriso negro pra você, conservador de plantão, que não consegue compreender o significado desta data tão importante.


Gustavo Menoné - mestre em ciências sociais pela PUC-SP. Docente no SENAC-SP e na Faculdade de Ciências de Guarulhos – FACIG/UNIESP.
21/11/2013
http://www.brasildefato.com.br/node/2665

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

PRECISAMOS PARAR O TREM SUICIDA DA CIVILIZAÇÃO CAPITALISTA OCIDENTAL ANTES QUE SEJA TARDE



Sociólogo Michael Löwy discorre sobre os pensamentos de Walter Benjamin, em especial, a sua visão do capitalismo como religião.

Marcelo Netto Rodrigues, Da Redação

Um dos maiores pesquisadores da obra de Walter Benjamin, Michael Löwy, sociólogo brasileiro radicado na França desde os anos de 1960, veio ao Brasil no mês passado para participar de debates em torno do recém-lançado O capitalismo como religião, livro por ele organizado.

Nele, além do fragmento que dá título ao livro, Löwy reuniu 16 ensaios de Benjamin ainda inéditos em português ou difíceis de consultar, que contêm, em graus variados, uma crítica radical da civilização capitalista-industrial moderna.

O capitalismo como religião “original”, redigido em 1921, mas que permaneceu inédito até 1985, é considerado um dos textos mais intrigantes de Benjamin, apesar de conter – ou justamente por isso – não mais do que três páginas.

Como, uma vez, sintetizou Löwy em artigo de 2006: “Inspirado na obra de Max Weber [1864-1920] – nominalmente citado –, sob uma afinidade eletiva com “A ética protestante e o espírito do capitalismo” [1904-1905/1920], Benjamin [não obstante] vai mais longe que o sociólogo: o capitalismo não tem somente origens religiosas, ele mesmo é uma religião, um culto incessante, sem trégua nem piedade, que conduz o planeta humano à “casa do desespero”. Esse fragmento pertence, como alguns textos de Georg Lukács, Ernst Bloch ou Erich Fromm, à categoria das ‘interpretações’ anticapitalistas de Weber”.
 

Michael Löwy
 
Brasil de Fato – Como atua o capitalismo como religião na visão de Benjamin? Essa visão ainda é pertinente?

Michael Löwy – Benjamin tem algumas intuições fortes neste ensaio, que não é um ensaio marxista, Nessa época, Benjamin era próximo do anarquismo, do socialismo libertário, mas ele capta alguns aspectos essenciais do capitalismo que são surpreendentemente atuais. Primeiro, ele define o capitalismo como culto religioso, rituais, práticas de adoração. Ele menciona que uma das divindades dessa religião capitalista é o dinheiro. Enquanto as práticas capitalistas, a especulação na Bolsa, as negociatas bancárias, tudo isso, são elementos desse ritual religioso em torno do dinheiro. Ele diz que esse culto é sem trégua nem piedade. O capitalismo não para, não tem feriado. De dia e de noite, acompanha as pessoas, do nascimento ao túmulo. Enfim, o capitalismo ocupa o conjunto da vida das pessoas. E ele é completamente impiedoso, não possui ética. Isso Max Weber já tinha dito. E Benjamin retoma alguns temas de Weber. O capitalismo é sem ética. Por essência, ele é estranho a qualquer argumento ético. Não por maldade, mas porque a lógica do sistema não admite critérios éticos. Isso parece também muito atual. Além disso, Benjamin também diz que no coração da religião capitalista há o conceito de Schuld, que em alemão é ao mesmo tempo “dívida” e “culpa”. Benjamin diz que é uma coincidência diabólica que culpa e dívida sejam a mesma palavra. O que a gente vê hoje com a crise capitalista é exatamente isso, quer dizer, o argumento dos governos, dos bancos, dos economistas, da imprensa, é que quem está endividado é culpado. Se Grécia, Portugal e Espanha estão endividados é culpa deles, porque são preguiçosos, não trabalham. Toda uma argumentação pseudo-religiosa, moralista, que explica a dívida pela culpa. Essa conjunção diabólica está no centro dessa situação atual na Europa. Isso é muito evidente. Outra característica do capitalismo como religião, segundo Benjamin, é o desespero. A religião capitalista levou a humanidade à casa do desespero. Isso a gente vê hoje com a crise, com esse estado de espírito de desespero terrível das pessoas, que se traduz até em suicídio, coisas bastante terríveis do ponto de vista humano. Então, acho que [a leitura feita por Benjamin] é de uma atualidade tremenda.

Brasil de Fato – Em As utopias de Michael Löwy: reflexões sobre um marxista insubordinado (2007), lá no apêndice, o senhor traça comentários sobre trechos d’ O capitalismo como religião, mas o fragmento em si não aparece na íntegra. Agora, o texto inteiro de Benjamin é publicado, mas sem os seus comentários...

Michael Löwy – Aquele texto que saiu em As utopias é uma conferência que dei naquela ocasião e escolhi como tema esse texto de Benjamin. Então, como já havia sido publicado não era o caso de retomá-lo. Naquela coletânea não aparece o texto do Benjamin porque se trata de outra temática e eu queria que o texto [na íntegra] figurasse nesta nova coletânea que estamos lançando.

Brasil de Fato – Na orelha do livro, a psicanalista Maria Rita Kehl ressalta que apesar da palavra “melancolia” não estar contida no texto de Benjamin, seu sentido é iluminado por ele.

Michael Löwy – A “melancolia” aqui aparece sob a forma do desespero, o sentimento de que você está condenado sem esperança: a desesperança. O capitalismo é uma jaula de ferro, [conceito desenvolvido por Weber], na qual estamos fechados sem saída. Isso é o desespero, isso é a melancolia. Agora, Benjamin não é um melancólico resignado. Ele tem um ensaio sobre surrealismo, de 1929, em que ele diz que ser comunista, ser revolucionário, exige pessimismo. Ser revolucionário é organizar o pessimismo. Então o pessimismo, a melancolia e até o desespero de Benjamin não são resignados, não são fatalistas como era Weber. São ativos, são rebeldes, são revolucionários. É um pouco difícil entender isso: como você pode ser um pessimista revolucionário. Então, Benjamin argumenta que há o pessimismo porque se deixarmos as coisas correrem como até agora, a catástrofe é inevitável. E até agora tem sido assim. Temos sido derrotados e a história é uma sucessão de catástrofes. Mas, ao mesmo tempo, é um chamado para a ação. Se queremos impedir a catástrofe, temos que agir. E a única esperança de impedir a catástrofe é a revolução. A revolução, ele escreve em Rua de mão única, é você cortar o fi o da meada antes que pegue fogo na dinamite.
Então é um chamado à ação antes que seja tarde demais. A uma ação urgente. Então, todo espírito dele é esse: precisamos agir antes que seja tarde demais. Então é um pessimismo ativo, é uma melancolia ativa e é um desespero ativo, paradoxal, mas é assim. Então, nesse fragmento, não chega a ser um ensaio, sobre o capitalismo como religião você vê que ele está buscando uma saída. Não está resignado, está buscando uma saída, mais além do desespero. Temos que encontrar a porta, a janela para sair dessa casa do desespero. Então, ele vai discutindo várias propostas de saída, dizendo: “Essa é uma ilusão”. Por exemplo, ele pega os monges que se afastaram do capitalismo, mas isso não é uma saída. Há quem propõe reformar o capitalismo e isso não é uma saída, é uma ilusão, não dá para reformar o capitalismo. Então, ele vai afastando algumas soluções, outras ele não diz se concorda ou não, mas provavelmente ele tem mais simpatia.
Por exemplo, tem um anarquista chamado Erich Unger, que ele propõe que os povos abandonem os países capitalistas para irem viver lá onde o capitalismo ainda não chegou. Não sei se ele partilhava isso. Acho que ele é mais próximo a essa época de um autor que ele cita no fragmento que é o Gustav Landauer, que era um anarquista romântico que tinha um pouco a ideia de que as pessoas devem que sair das cidades capitalistas para viver em colônias anarquistas. Seriam, talvez, as ocupações e assentamentos do MST.

Brasil de Fato – Como o senhor vê os zapatistas nisso? Pergunto isso porque o John Holloway naquele livro Como  mudar o mundo sem tomar o poder (2002) fala também da necessidade de um pessimismo,  advogando que o “erro” de alguns marxistas estaria justamente no contrário, em insistir num positivismo, sem trocadilhos, como base para a ação dos trabalhadores.

Michael Löwy – Muitas das colocações do Holloway são interessantes, toda parte de crítica dele ao capitalismo acho muito pertinente e esse pessimismo, digamos, revolucionário. Agora, a colocação de mudar o mundo sem tomar o poder, eu acho problemática. Eu acho que você não escapa da necessidade de criar novas formas de poder. Inclusive a experiência zapatista é essa. O que eles fizeram lá, onde têm influência, foi tomar o poder. Criaram formas de poder por baixo, alternativas, democráticas e o projeto deles pro México, eu acho que é esse:  o de criar uma nova forma de poder como alternativa ao poder estatal capitalista institucional que oprime o povo mexicano há um século.
Agora, Benjamin está buscando uma saída para isso, ele não tem uma, mas a simpatia dele vai para o anarquismo, apesar de ele não ter uma proposta. Depois ele vai descobrir o marxismo e ele vai, digamos, aderir à proposta marxista, mas guardando um certo  aspecto anarquista que faz com que ele nunca vá aderir totalmente ao Partido Comunista. Mesmo ao projeto soviético ele guarda uma distância crítica que tem a ver com essas raízes libertárias do pensamento dele.

Brasil de Fato – Falando dessas raízes do Benjamim, na contracapa, a também especialista em Benjamin, a professora Jeanne Marie Gagnebin cita que a intenção do livro é a de explorar como Benjamin soube unir, nessa rejeição ao capitalismo “impulsos oriundos do romantismo alemão, do messianismo judaico e do marxismo libertário”. Como é que esses três impulsos entraram na vida do Benjamin?

Michael Löwy – O Benjamin começa com reflexões teológicas messiânicas, mas já como inspiração revolucionária. Tem um texto dele de 1915 sobre a vida dos estudantes em que ele já diz que o progresso é uma mistificação, essa ideia de que a história é um caminho muito mais denso, a alternativa são as imagens utópicas como o reino messiânico e a revolução. E no mesmo texto ele menciona também os anarquistas. Então, desde o começo ele tem essa ideia da utopia revolucionária messiânica como alternativa à ideia burguesa de progresso. Bom, isso vai se desdobrando na obra dele, com uma virada importante a partir de 1923 quando ele descobre o marxismo.
Mas, então, é um marxismo que incorpora a crítica romântica à civilização. E isso é o tema que está nessa coletânea, que mostra como a crítica romântica à civilização é um fio condutor da obra dele desde o começo e a partir de 1923, 1924, já associada ao marxismo. E no começo também associada a temas messiânicos, teológicos que depois vão sendo um pouco marginalizados, mas que voltam no fim, nos últimos escritos, com força nessa síntese extraordinária que são as Teses sobre o conceito de história (1940) que o marxismo se associa à teologia e à crítica romântica.
Agora, a ideia de uma aliança entre a teologia e o materialismo histórico é um dos pontos mais difíceis de entender na Europa. Os leitores de Benjamin ou são marxistas, então dizem que a teologia é uma metáfora, ou como [Gerhard] Scholem, são teólogos, então dizem que o marxismo é uma questão de terminologias, ou como [Jürgen] Habermas, dizem que é impossível se juntar marxismo com teologia e que, portanto, isso não funciona. Então é difícil na Europa entender isso. Agora, aqui na América Latina, há condições para se entender Benjamin, porque aqui temos o fenômeno da Teologia da Libertação, que foi justamente isso.
Embora eles não tivessem lido Benjamin, embora a teologia seja mais cristã do que judaica, aqui na América Latina há conjunção entre teologia e marxismo não é uma hipótese filosófica meio arriscada, é um movimento de massas que mudou a história da América Latina, com a Teologia da Libertação. Então, é aqui na América Latina que se tem condições de se entender Walter Benjamin de uma maneira mais profunda.

Brasil de Fato – Em contraposição à noção de progresso linear, o que seria o progresso para o Benjamin, na acepção da palavra, não na mistificação?

Michael Löwy – A ideia dominante de progresso, que é a burguesa, mas que foi assumida por boa parte da esquerda, é a de que a história da humanidade é a história do progresso. O capitalismo é um progresso em relação ao feudalismo e o socialismo vai coroar , digamos, vai retomar as conquistas capitalistas e vai levá-las até as últimas consequências. E a história é isso: você simplesmente tem que nadar com a corrente, que a história vai caminhando nessa direção.
Então, Benjamin rejeita essa mistificação, mostra que a história não é nada disso, a história é a história dos dominantes, das classes dominantes, que uma vai herdando da outra e é a história da opressão e da derrota das tentativas de revolta dos oprimidos. Mas essas tentativas de revoltas são os únicos aspectos progressistas da história, são essas revoluções, desde Spartacus, os escravos que se revoltam, os camponeses que se revoltam no século 16 na Alemanha com  Thomas Münzer, a Comuna de Paris, esses momentos de rebelião dos oprimidos são os únicos momentos de progresso.
Então, existe o que Benjamin chama uma tradição dos oprimidos, que inclui Spartacus, Münzer, Comuna de Paris, a revolução alemã de 1919 de Rosa Luxemburgo. Então, progresso são esses momentos messiânicos, utópicos, revolucionários, que são a interrupção da dominação, do progresso das classes dominantes e o verdadeiro progresso será o dia em que se interromper o progresso da dominação. Esse será o verdadeiro progresso revolucionário.
Brasil de Fato – E qual era a visão dele de vanguarda? Como ele via o processo da Revolução Russa?

Michael Löwy – Benjamin não tem uma reflexão sobre a vanguarda. Ele não tem uma reflexão sobre estratégia e tática. A temática política dele é uma reflexão filosófica sobre a história, que é muito instigante, muito atual. Mas ele não é alguém que dá a linha estratégica, tática, de partido. Aí temos que completar Benjamin com outros. Com relação à experiência soviética ele passa por momentos diferentes. No começo, ele ignora, o que é curioso porque de 1917 à 1923 é quando o entusiasmo pela Revolução Russa atinge o máximo na Europa. E curiosamente Benjamin está fora, ele não se deu conta. Ele descobre a revolução russa quando se apaixona por uma revolucionária russa [da Letônia], Asja Lacis, e quando ele lê História e consciência de classe, do Georg Lukács, em 1925.
Então é uma descoberta tardia. Aí ele se entusiasma com a revolução russa, com o comunismo e vai visitar a União Soviética, em 1927, mais por amor por Asja Lacis do que por outra coisa, e aí ele começa já a perceber que há problemas. Quando passa alguns meses na União Soviética e ele simpatiza com um pessoal ligado a oposição de esquerda, que se dão conta de que algo está indo errado. Nas notas que escreve durante esta estadia ele diz que parece que a revolução se interrompeu, parece que a revolução parou. Enfi m, isso é um primeiro momento crítico.
Ele continua acompanhando as críticas da oposição de esquerda e em um certo momento ele lê, acho que a História da Revolução Russa, de Trotsky (1930), e escreve, acho que para o Scholem, nunca vi uma coisa tão impressionante, ele se interessa pelos argumentos de Trotsky, mas ele não adere, tampouco adere ao partido, mas há um período curto, entre 1933, quando os nazistas tomam o poder, e 35, 36, quando começam os processos de Moscou em que ele parece aderir ao marxismo soviético, escreve alguns artigos muito entusiastas sobre a experiência soviética, mas é um período curto, dois, três anos.
Quando vêm os processos de Moscou, ele fica perplexo. Ele não consegue explicar isso e, a partir daí, Ele começa mais uma vez a se distanciar e, em 1938, ele já tem uma visão claramente crítica, embora não exposta publicamente. Ele discute com Brecht, quando os dois dizem: “Bom, mas o que é a União Soviética? É uma monarquia operária? Não é possível, é um monstro, é como um peixe com chifre”. Ele tem essa idéia de que a União Soviética virou um monstro inexplicável. Têm umas notas que ele toma sobre Brecht em que ele fala da polícia, que ele a compara com a Gestapo, são os mesmos métodos.
Mas, de alguma maneira, ele ainda tem esperança na União Soviética como força antifascista. Em 1938, a União Soviética, de Stalin, é uma ditadura autocrática com todos os seus terrores, mas é a única esperança que temos de resistir ao nazismo. Quando vem o pacto Molotov-Ribbentrop [o tratado de não-agressão firmado às vésperas da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), entre a Alemanha nazista e a União Soviética], ele se dá conta que nem isso. Então, ele vê como traição e aí nas Teses sobre o conceito de história já aparece a ideia de que o stalinismo traiu a causa, não só a causa socialista, mas a antifascista.

Brasil de Fato – Como era a relação dele com o Brecht?

Michael Löwy – Ele era muito amigo do Brecht, tinha muito entusiasmo por sua obra teatral, pela poesia, muita simpatia pelo materialismo de Brecht, mas guardava uma certa distância porque ele tinha outras referências, românticas, teológicas que o Brecht não partilhava. Então uma parte do marxismo dele é brechtiano e outra parte não é. E os dois compartem essa atitude de ao mesmo tempo simpatia e distância em relação à União Soviética. O Benjamin com mais distância.
Nessas notas sobre Brecht, Benjamin diz que alguns dos poemas de Brecht dos anos de 1930 parecem que estão celebrando a polícia soviética. “Isso não dá, né?”, diz ele. Então, tem uma certa distância em relação a Brecht, mas os dois são muito próximos. E quando ele manda uma cópia das Teses sobre o conceito de história para o Brecht, este fica muito entusiasmado, só que ele descarta a teologia. Ele diz este texto é formidável, mas deixemos de lado esses aspectos teológicos judaicos que não tenho interesse.

Brasil de Fato – Além do fragmento principal, o livro traz outros 16 ensaios. Quais são os de maior destaque?

Michael Löwy – É difícil. Cada um deles tem aspectos que eu acho muito interessantes. É difícil dar mais importância a uns do que a outros. Cada um deles tem uma contribuição específi ca e o conjunto forma um mosaico de crítica da civilização. Para dar um exemplo, há um texto que se chama As armas do futuro, que acho muito interessante.
É um texto sobre a guerra química, os gases, e a ideia do Benjamin é de que a tecnologia e a ciência moderna a serviço do capitalismo tem conseqüências trágicas. É a tal dialética do progresso. A técnica e a ciência são portadoras do progresso por um lado, mas por outro são portadoras de destruição e do capitalismo.
As guerras do futuro, então, serão terríveis porque utilizarão as técnicas mais avançadas do capitalismo. E podem utilizar os gases de maneira a exterminar a população civil. Agora, ele que era o mais pessimista dos intelectuais de esquerda da Europa, mesmo ele não podia prever a bomba atômica, muito pior do que a guerra de gás. Mas ele teve essa intuição de que a ciência a serviço do capitalismo e das guerras imperialistas vai ter consequências terríveis. Foi praticamente o único intelectual na Europa a ter essa intuição.

Brasil de Fato – Como foi a compilação? Partiu de sua pesquisa?

Michael Löwy – Sim, eu reuni esses textos – há uma edição francesa que é um pouco diferente – com dois critérios. Um, que era o de serem textos inéditos, na França e no Brasil, não todos, mas a grande maioria, e o segundo, esse fio condutor, que é a crítica à civilização capitalista, de inspiração romântica. Esse foi o critério que dá uma unidade ao conjunto. São textos muito diferentes, de épocas diferentes, alguns pré-marxistas, outros já marxistas, alguns têm a ver com literatura, com teologia, com política, enfim, temas muito diferentes, mas há um fio condutor. Eu não os descobri, eles já estão publicados [em outras línguas] nas Obras completas.

Brasil de Fato – Como foi a relação de Benjamin com a Escola de Frankfurt?

Michael Löwy – É verdade que Horkheimer, que era professor na Escola de Frankfurt, foi um dos que rejeitaram a tese de habilitação de Benjamin que era um trabalho sobre o drama barroco alemão. Mas isso era numa época em que Horkheimer não conhecia pessoalmente Benjamin, também era um livro não-marxista, e Horkheimer a essa época já se interessava pelo marxismo. Enfim, houve esse episódio, mas a decisão principal não coube a Horkheimer, coube a outras pessoas. Mais tarde eles vão se tornar amigos e, de certa maneira, Benjamin faz parte dessa constelação que é a Escola de Frankfurt. Ele tem muitas coisas em comum com Adorno e Horkheimer.
Ele simpatizava com a Escola de Frankfurt e aqui eu publico um texto em que ele mostra como a Escola de Frankfurt é uma crítica radical do positivismo, tanto o burguês quanto o marxista. E o pessoal da Escola de Frankfurt, afinal, foi quem manteve ele em Paris com uma pequena bolsa, justo o suficiente pra ele não morrer de fome, mas graças a isso que ele pode sobreviver no exílio francês. Agora, eles pediam de vez em quando artigos para ele artigos para publicar na Zeitschrift für Sozialforschung, revista para pesquisa social, que  era uma revista da Escola de Frankfurt, eles já nos Estados Unidos, exilados. Ele escreveu um texto sobre Baudelaire que o Adorno criticou e Benjamin teve que reescrever. Houve aí uma certa tensão entre eles, mas ao fi nal o texto foi publicado em nova versão. Há uma relação ao mesmo tempo tensionada, mas de proximidade. E por último o Adorno tentou convencer Benjamin a ir para os Estados Unidos, mas ele não queria, queria estar na Europa e acabou caindo na armadilha da ocupação nazista da França.

Brasil de Fato – Esse índice onomástico foi construído pelo senhor?

Michael Löwy – Não. Isso foi o pessoal da editora.

Brasil de Fato – É que eu achei interessante que, a despeito do livro tratar de religião, às personagens deste campo, ali, são concedidas as explicações mais sucintas. Tipo: “Cristo: personagem do Novo Testamento.” Ponto. Judas, Lutero, Moisés... cada um tem uma linha só (risos)...

Michael Löwy – Não assumo responsabilidade... (risos). Não sou responsável pelo índice. Mas suponho que os leitores sabem quem é Cristo. Aliás, nem sei por que puseram. Quem é que no Brasil não sabe quem é Cristo. Se você encontrar uma pessoa que não conheça quem é Cristo, merece fazer uma tese.

 Brasil de Fato – E as jornadas de junho? Como o senhor vê essa nova cultura política surgindo no Brasil, esse novo espírito de contestação... Ele vai numa direção mais benjaminiana, de uma contestação que passa pelo romantismo, mas em direção a algo novo?

Michael Löwy – O Benjamin fala que o capitalismo nos leva à casa do desespero – e é muito justo. Mas acho que o que está acontecendo agora, não para todos, mas para uma parte da população, sobretudo a juventude – e não só no Brasil, isso é internacional –, o desespero está se transformando em raiva.
E Benjamin tem uma frase nas Teses sobre o conceito de história em que ele diz “sem raiva não há luta de classe” – isso é muito verdadeiro. Então, o desespero se transforma em raiva e em indignação, isso é muito importante. Então, temos o movimento dos Indignados que atravessa toda Europa, vai pelos Estados Unidos, Occupy e aqui chega no Brasil.
O que acho de interessante nesse movimento, sobretudo nos jovens se mobilizarem, essa raiva, essa indignação contra a injustiça, que para alguns é uma compreensão já bastante avançada do que a injustiça tem a ver com o sistema, com o capitalismo, e outro uma visão mais difusa. Agora, concretamente, nas jornadas de junho no Brasil, eu acho que há esse fenômeno da indignação, da raiva. Acho que, no primeiro momento, esse movimento com o pessoal do Passe Livre teve uma inspiração radical, utópicorevolucionária, eu diria, libertária, extremamente positiva.
Positivo porque é negativo. Nesse primeiro momento, quando a inspiração vinha da turma do Passe Livre, do MPL, eu acho que foi extraordinário. Tinha um objetivo muito justo, que era protestar contra esse absurdo que era aumentar o preço das passagens, colocar uma reivindicação muito importante, que é a do passe livre, da gratuidade, do serviço público gratuito, além de ter um aspecto ecológico muito importante, que é favorecer o transporte público para reduzir a circulação de automóveis, então, acho que foi realmente formidável.
Depois, houve a repressão e as pessoas saíram às ruas indignadas com a repressão, muito importante, mas o negócio foi crescendo, crescendo e acabou se diluindo. Essa é a minha impressão. Acabou virando um grande movimento em que já não se sabia quem era o inimigo.
Aí vinha o negócio da construção dos estádios da FIFA, da corrupção e isso e aquilo, e depois apareceu uma turma de direita batendo em militante de esquerda porque vinham com bandeiras vermelhas. Acho que aí se diluiu a coisa, se perdeu um pouco aquele pique que tinha  no começo. Mas francamente, não posso avançar muito porque acompanhei de longe, ouço opinião de pessoas, mais variadas. Mas meu sentimento é este: um movimento que começou com uma orientação claramente radical, libertária, anticapitalista, nas suas expressões mais politizadas.

Brasil de Fato – Ele iria nessa chave romântica revolucionária do Benjamin?

Michael Löwy – É difícil dizer. Talvez em algumas manifestações. Teríamos que estudar mais alguns documentos que saíram, talvez com o pessoal do Passe Livre... Não sei.

Brasil de Fato – Para encerrar, gostaria que o senhor falasse da imagem mais conhecida de Benjamin, do “puxar o freio de mão”.

Michael Löwy – O Benjamin, nas Teses, não faz críticas a Marx, salvo uma ou duas. Uma delas é a seguinte, ele diz que Marx achava que as revoluções são as locomotivas da história, mas talvez a coisa seja um pouco diferente. Talvez a revolução seja a humanidade puxando os freios para parar o trem.
Acho que Benjamin estava pensando na história que ele está vivendo que era a história de uma corrida para a catástrofe e a catástrofe era a Segunda Guerra mundial e ele diz: “Precisamos puxar o freio porque se não vai ser um desastre”. E o desastre veio: Auschwitz e Hiroshima. Benjamin dizia que o progresso até agora é uma sucessão de catástrofes, só que as duas maiores catástrofes da humanidade foram acontecer logo depois. Mas ele estava prevendo.
Hoje em dia a ameaça é a catástrofe ecológica, quer dizer, o trem da civilização capitalista está correndo com uma rapidez crescente para um abismo que se chama catástrofe ecológica. É o aquecimento global, é a mudança climática, que é um desastre de proporções inéditas na história da humanidade e, se deixarmos as coisas continuar, “business as usual”, não daqui a um século, mas de algumas dezenas de anos, vamos estar em uma situação terrível. Daí a atualidade da chamada de Benjamin: precisamos parar o trem suicida da civilização capitalista ocidental antes que seja tarde demais. (Colaborou Aldo Gama)



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07/11/2013
Foto: João Peschanski