Pesquisar este blog

terça-feira, 24 de novembro de 2020

ADENILDE PETRINA: A HISTÓRIA DA RÁDIO QUE MARCOU A LUTA DO POVO NEGRO EM JUIZ DE FORA

 

Petrina foi líder da rádio Mega FM, que ficou no ar por 10 anos, até ser fechada pela Anatel em 2007.

Larissa Costa


   
Adenilde Petrina "Só vai haver democracia no país quando houver a democratização dos meios de comunicação"          -         Créditos da foto: Twin Alvarenga

 A liderança comunitária e integrante do coletivo Vozes da Rua, Adenilde Petrina tem experiência nos movimentos populares desde a década de 1970, quando foi morar no bairro Santa Cândida, periferia da cidade de Juiz de Fora, na Zona da Mata de Minas Gerais.

A “militância por necessidade” começou na associação de bairro e chegou na luta pela democratização da comunicação. Adenilde foi uma das responsáveis pela rádio comunitária Mega FM, fundada em 1997, que ficou no ar por 10 anos, até ser fechada pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Com inspiração em iniciativas como a da Rádio Favela, de Belo Horizonte, a Rádio Mega chegou a 70% da cidade com uma programação diversa e plural, do rock pesado aos programas religiosos.

Hoje, a rádio é tema de tese, dissertação, monografia e artigos de revista. Mas antes disso, é uma experiência esperançosa de organização social, de comunicação popular na periferia, de formação e luta do povo negro. Confira a entrevista com Adenilde, que é Doutora Honoris Causa da Universidade Federal de Juiz de Fora, título recebido em nome da comunidade.

BRASIL DE FATO MG – A senhora começou sua militância política ainda na década de 1970. Como que isso aconteceu?

ADENILDE PETRINA – Comecei com 18 pra 19 anos, aqui no bairro Santa Cândida. Na época, aqui não tinha água, luz, esgoto, calçamento, nem casas direito. A gente tinha que buscar água muito longe, e andava muito. A maioria da população trabalhava e quando chegava à noite ia buscar água e tinha que subir um morro danado.

A dona Aparecida começou um movimento para pedir as autoridades melhorias para o bairro e assim eu resolvi participar. Fui secretária da Sociedade Pró Melhoramento do bairro Santa Cândida (SPM).

A militância começou por necessidade, de todas nós daqui bairro. A maioria das pessoas que estavam no movimento eram mulheres. E foi muita luta para conseguir o que a gente queria. Primeiro conseguimos a luz em uma parte do bairro, tivemos que lutar para ter luz na outra parte.

Conseguimos água e calçamento e aí ficou faltando a escola, porque todo ano era uma dificuldade para matricular as crianças. As mulheres dormiam nas filas quando chegava a vez delas, não tinha mais vaga.

A gente lutou bastante e conseguimos um terreno e a escola foi construída em 1985, depois que já tinha acabado a Ditadura Militar, quando teve o primeiro governo eleito democraticamente, entre aspas, porque a democracia não chegou nas periferias. Ganhamos o terreno e a prefeitura construiu, inicialmente, duas salas e na medida da necessidade foi aumentando.

Hoje a escola do nosso bairro é nosso orgulho porque, é uma escola muito respeitada pelos projetos que desenvolve junto com a Universidade Federal de Juiz de Fora. Depois o pessoal quis a igreja para poder fazer catecismo, reuniões e assistir as missas. Conseguimos o terreno e também a construção foi feita.

BRASIL DE FATO MG – Por que a senhora afirma que a democracia não chegou até as periferias?

ADENILDE PETRINA – A periferia na época era invisibilizada, tanto é que Carolina Maria de Jesus, que é uma escritora que a gente valoriza muito, escreveu nos anos 1960, um livro em que ela fala que a periferia é o quarto de despejo da cidade. É uma comunidade que não existe, só existe como um lugar em que você vai, pega o que precisa e depois não dá importância.

E mais para frente, estudando o Frantz Fanon, “Os condenados da terra”, a gente percebeu que existem duas cidades, a cidade negra, que são os bairros e as periferias, e a cidade branca, que é o centro e os bairros de luxo.

 

“Rádio é igual as capitanias hereditárias, pertencem a poucos da elite”

 

Aí a gente questiona que democracia é essa. A periferia é procurada de quatro em quatro anos, e durante os quatro anos seguintes, vive de qualquer maneira. A cultura hip hop, nos anos 1980, nos tirou da invisibilidade.

Passamos a existir, mas os problemas continuaram os mesmos: o racismo, a violência, o descaso das autoridades, a ausência de políticas públicas, falta de saúde e educação de qualidade. Como o Fanon falou, nós continuamos colonizados e tudo o que a gente recebe é de segunda classe.

BRASIL DE FATO MG – E no Santa Cândida vocês criaram a Rádio Mega.

ADENILDE PETRINA – Aqui no bairro tinha o DJ Nonô que possuía uma equipe de som chamada Space Lab. Ele fazia baile black nas periferias de Juiz de Fora e durante a semana, junto com o grêmio estudantil da escola Cândido Motta Filho, ele fazia uma programação de rádio escola no recreio dos alunos na parte da noite.

Conversando com ele, surgiu a ideia de montar uma rádio comunitária para tocar as músicas dos artistas da periferia e as que eles gostavam. Assim começou a movimentação para criar a Rádio Mega.

O povo da comunidade, no principio, ficou meio reticente, mas aderiu à ideia e assim a gente conseguiu um abaixo assinado que autorizava a rádio comunitária no nosso bairro, que entrou no ar no dia 19 de julho de 1997.

A população apareceu na assembleia para decidir a programação e, como era muita gente, o horário foi fatiado de uma em uma hora para que todo mundo pudesse participar e fazer o seu programa.

BRASIL DE FATO MG – E como era a programação da rádio?

ADENILDE PETRINA – Na assembleia, ficou definido que a rádio era pra levar informação, conhecimento, consciência, educação e ser uma ponte para a fraternidade dentro da comunidade e em outras comunidades que ela conseguisse chegar.

Para a programação, cada um escolheu o que queria e apareceram vários tipos de gostos, como samba, sertanejo raiz, pagode, rock n’roll nas suas várias tendências. Tinha também programas da igreja, mas era tudo plural, tinha a linha da teologia da libertação, renovação carismática, programa espírita, de umbanda, candomblé, de esoterismo também.

Tinha programa dos movimentos sociais da cidade, do movimento negro. Tinha um muito importante que foi o Voz D’África, que falava sobre África, porque ninguém conhecia. A gente fez uma pesquisa no bairro para saber o que o pessoal sabia sobre a África e a maioria só sabia que lá tinha zebra, leão e que tinha muita fome.

 

“Os poderosos não querem que a gente se informe para não lutar pelos nossos direitos”

 

O programa, a partir dessa pesquisa, falava que a África era um continente, como o europeu, o americano e o asiático; que tinha 54 países, línguas diferentes, culturas diferentes, música, arte, culinária. O programa tratava da história da África e dos negros no Brasil. A gente também tinha um programa indígena que chamava Potirõ, que era produzido pelo Conselho Indigenista Missionário.

Tinha um programa de mulher, que foi super importante, porque despertou na mulherada aqui do Santa Cândida a consciência de que a mulher tinha um lugar na história e direitos que a gente não conhecia. E foi muito bom a tomada de consciência que não éramos objeto, não tínhamos que sofrer violência.

A gente foi tomando consciência que não era propriedade de um homem da casa. 10:37 O programa do movimento gay chamado Diversidade tratava da questão LGBT e isso também foi bom pra Santa Cândida porque acabou com o preconceito e uniu todo mundo na mesma luta, descobrimos que estamos todos no mesmo barco.

Outro programa interessante, que a gente chamava de assombração, o Pega Fenômeno, falava do extraordinário, de fantasmas, ufologia. A gente pesquisava no bairro os causos de assombração e transformava essas histórias em novelas. E toda sexta-feira, à meia-noite passava na rádio. O pessoal gostava bastante.

BRASIL DE FATO MG – E o hip hop?

ADENILDE PETRINA – A cultura hip hop ocupava uma boa parte da programação da rádio e era feita por jovens, que tomavam conta da rádio durante a semana. E no fim de semana eram os mais velhos. Dos programas de rap na Mega, o movimento hip hop começou a se rearticular na cidade, porque já existia, mas tinha saído de cena.

Com a rádio, foram criadas várias posses, a primeira foi a posse de cultura hip hop Antônio Conselheiro. Aí essas posses tinham pessoas de várias comunidades, de onde a rádio chegava. O pessoal se ligava no hip hop e vinha na rádio para conhecer quem fazia os programas. Depois, veio a posse Zumbi dos Palmares e aí a gente tinha um trabalho de levar a cultura hip hop nas escolas.

E a partir daí, dentro da rádio, foi criada o evento Agosto Negro, em 2003. Nesse evento, a gente discute assuntos interessantes para cultura negra e para a raça negra. A gente estuda por uns dois meses e depois sai durante o mês de agosto nas escolas levando aquilo que a gente estudou.

O primeiro Agosto Negro teve como tema a informação como o quinto elemento da cultura hip hop. Nesse tema, a gente falou sobre saúde, racismo, preconceito contra os homossexuais, contra as mulheres. E aí não parou mais. O último Agosto Negro, por causa da pandemia, foi feito online.

BRASIL DE FATO MG – E como foi tocar uma rádio comunitária sem recurso por tanto tempo?

ADENILDE PETRINA – A gente tocou essa rádio no braço mesmo, era nós por nós, praticamente sem nenhum recurso. A rádio funcionava em um cômodo aqui em casa, então a gente não cobrava luz nem água nem nada, porque a família toda participava de movimento social.

E aí cada um trazia seus CDs, seu material de trabalho, porque a rádio não tinha.  E os equipamentos eram emprestados e todo mundo contribuía com a vontade. A gente fazia reunião de dois em dois meses, cada um chegava com o lanche, que era comunitário, e assim a gente foi vivendo. Quando tinha problema no transmissor, era de forma comunitária que a gente resolvia.

BRASIL DE FATO MG – E rádio foi fechada em 2003.

ADENILDE PETRINA – A Anatel teve aqui, levou nosso transmissor, mas nós conseguimos outro e funcionamos até 2007, quando a gente sofreu mais ameaças. Foi quando a gente resolveu encerrar as atividades da rádio, mas continuamos com a cultura hip hop, com o Agosto Negro.

Até chegar em 2013 quando a gente criou o coletivo Vozes da Rua, para cumprir com os mesmos objetivos da Rádio Mega, que era levar informação, conhecimento, cultura hip hop e ser uma ponte para fraternidade entre as comunidades e os jovens da nossa periferia.

BRASIL DE FATO MG – Imagino que vocês devem ter sofrido muito quando a rádio foi fechada.

ADENILDE PETRINA – Sofremos sim, ficamos indignados, porque a gente foi processado, condenado, mas o advogado que nos defendeu de graça mostrou que a gente não tinha interesse de ficar rico ou de ganhar dinheiro com a rádio. Nosso interesse era dar voz aos movimentos sociais e às pessoas das comunidades.

Nós pagamos serviços comunitários, pagamos cestas básicas durante um tempo, a gente não podia sair da cidade, mas a rádio não saiu do ar, porque nós conseguimos o outro transmissor. Depois é que não deu mais. Foi uma barra muito grande.

Só que nas nossas reuniões, a gente discutia sobre conseguir uma concessão, a gente até tentou em 2001, mas não conseguiu e continuamos a funcionar assim mesmo. E nas reuniões a gente falava que a qualquer hora a rádio poderia ser fechada, e que a gente tinha que fazer nosso trabalho de uma maneira que depois da rádio fechada, a gente não ficasse com remorso de não ter feito o que deveria.

 

“O que leva ao fechamento de uma rádio comunitária é a força que tem dentro das comunidades”

 

Então a gente sentava a pua mesmo, sentava o cacete nas autoridades, falava tudo o que a gente queria, denunciava o que tinha de denunciar, falava dos problemas da comunidade, dos problemas do país, metia o cacete na televisão que não nos representava.

A gente sente sim muita falta da rádio, mas temos a sensação de dever cumprido. Fizemos tudo que uma rádio, em nossa opinião, deveria fazer, que era ser voz da comunidade, da periferia, levar informações, formar e alfabetizar o olhar das pessoas para mídia hegemônica.

BRASIL DE FATO MG – E por que não conseguiram a concessão?

ADENILDE PETRINA – A gente fez tudo direitinho, de acordo com o manual para conseguir a concessão. A dona Maria e a Taís foram para Belo Horizonte levar o material que a gente reuniu, daí o moço que recebeu a gente, que eu não me lembro do nome, mas era ele quem ia fazer a inscrição da rádio, perguntou se a gente tinha padrinho político.

A gente respondeu que não, porque nossa rádio era plural e política, mas não no sentido de partido político. Ele respondeu que por isso a gente já tinha perdido a concessão. E perdemos mesmo. Isso foi por volta de 2002.

Em 2007 a gente nem tentou mais, porque quando a Anatel fechou a rádio, ela cobrou uma multa imensa. E a gente não tinha dinheiro e nem condição de pagar, nem se todo mundo juntasse tudo o que ganhava não ia dar. O encarregado de fazer o arresto dos bens da rádio chegou, mas não tinha nada mais, porque a gente tinha devolvido tudo.

Ele disse na época, que ia cobrar da diretoria. Nós ficamos apavorados, fomos na ouvidoria, e o ouvidor explicou que o Lula tinha assinado uma lei que parcelava a dívida das rádios comunitárias e até perdoava uma parte. E nós esperamos três meses para essa lei sair no Diário Oficial, aí pagamos 20 prestações de R$ 140. Fechamos tudo e guardamos os documentos para história.

BRASIL DE FATO MG – A perseguição às rádios comunitárias acontece até hoje. Como a senhora vê isso?

ADENILDE PETRINA – A gente estudava muito isso dentro da rádio, porque tem uma professora da universidade que dá aula de comunicação comunitária e participava da rádio com um programa de mulher. Ela discutia muito com a gente a questão da comunicação no Brasil.

Então a gente ficou sabendo que a rádio é igual as capitanias hereditárias, que pertenciam a poucos donos, que são da elite. A elite tem a voz e a gente não tem. As rádios hegemônicas não têm preocupação em levar informação para o povo, pelo contrário, elas desinformam as pessoas.

E a Rádio Mega surgiu para isso mesmo, para levar informação. Acredito que por a gente viver em uma sociedade de classes, os poderosos não querem que a gente se informe para não lutar pelos nossos direitos.

O que levou ao fechamento da nossa rádio, e de outras tantas no Brasil, foi por causa da força que tem uma rádio dentro das comunidades, da força de organização. E posso atestar essa força porque todo mundo que escutava a nossa rádio sabia muito bem discernir uma informação que era dada pela mídia hegemônica daquela que era dada pelos moradores da comunidade.

Que são os intelectuais orgânicos que participavam da rádio e levavam as informações do ponto de vista deles. A rádio era a voz das pessoas que não tinham direito à fala e nem de mostrar sua arte, sua inteligência e capacidade para a sociedade. A rádio comunitária é um aglutinador de pessoas e disseminadora de ideias.

BRASIL DE FATO MG – A senhora fala sobre essa relação entre a rádio e informação com movimentos populares. Infelizmente, muitos movimentos ainda não valorizam a comunicação como estratégica na disputa de poder. Como a senhora avalia isso?

ADENILDE PETRINA – Acredito que os movimentos sociais não perceberam ainda que a democracia não chegou nas classes populares, nos morros e nas periferias do Brasil. Os movimentos não se deram conta da importância da informação e não refletiram que a sociedade só será democratizada quando houver a democratização da informação.

Só vai haver democracia no país quando houver a democratização dos meios de comunicação. E a própria mídia domina, é igual o Mano Brown falou, a mídia é pior que uma droga, todo dia está nas casas alienando as pessoas.

BRASIL DE FATO MG – E para melhorar a comunicação com as periferias, o que é mais urgente?

ADENILDE PETRINA – A gente tem que discutir com as pessoas. Seja por meio do teatro, da conversa, a criação de jornaizinhos, fanzines pra distribuir na comunidade. Igual a gente fazia o “Se liga” que era distribuído pela cultura hip hop, com notícias que tinham no máximo quinze linhas, em uma linguagem bem fácil que o pessoal podia ler no ônibus, se inteirar e depois buscar mais informação.

Acredito que além de esclarecer a população sobre a importância do conhecimento, a gente deve criar veículos para poder levar a informação pra toda comunidade.

A internet eu acho super importante mas, como a maioria dos moradores das periferias ainda não tem internet, pelo menos aqui no nosso bairro, para nós é meio difícil. E só uma minoria que vai aproveitar. Então a gente tem que buscar outras maneiras de levar informação.

Agosto Negro é uma. A gente vai para a rua, vai paras as praças, para as escolas, levando uma pauta sobre racismo, história dos negros, da África. A gente sabe que acabar com o racismo é difícil, porque para isso tem que acabar com o capitalismo. Para a gente chegar lá temos que ver que o racismo é um problema para toda a sociedade, não só para nós negros.




Fonte https://www.brasildefato.com.br/

Belo Horizonte

Brasil de Fato MG

23 de Novembro de 2020

Fonte: BdF Minas Gerais

Edição: Elis Almeida

 

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

A IMPORTÂNCIA DA CULTURA AFRO-BRASILEIRA E INDÍGENA NAS ESCOLAS

 Jicéli Nahani do Nascimento Kapp¹

                             Pintura: A criação de Deus/ Harmonia Rosale                       



Inicialmente, é importante contextualizarmos factualmente a relevância do tema afro-brasileiro e indígena no currículo escolar e como essa temática se tornou lei amparada oficialmente pela educação na BNCC.

No dia 10 de março de 2008 o ex-presidente da república, Luis Inácio Lula da Silva e Fernando Haddad, na época, Ministro da Educação, assinaram a Lei Nº 11.645 alterando a Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, estabelecendo assim, a obrigatoriedade de incluir oficialmente no currículo de ensino a temática “História e Cultura Afro brasileira e Indígena”, certificando assim, a melhoria dos direitos sociais e demonstrando a necessidade da implantação e consequentemente a busca de novas estratégias para novas políticas educacionais, que propõem e reconhecem uma sociedade diversificada.

Elizabeth Maria² (2010) em seu artigo, fomenta que:

                                                   A lei enfatiza o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional. Resgata assim as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinente à história do Brasil. (BORGES, 2010, p. 76).

Tais conteúdos serão trabalhados de forma interdisciplinar, com o objetivo de conscientizar os alunos sobre diversos pontos que, muitas vezes não são mencionados nos livros didáticos, pois esses fatos incidem apenas sobre a cultura europeia, nosso passado escravo e as consequências de leis impostas como a Lei nº 1, de 14 de janeiro de 1837³, são pouco abordadas, ainda hoje, há uma  certa “negação” da existência do racismo e é exatamente sobre essa recusa que devemos transformar a Lei 11.645 do papel em práticas dentro das salas de aula, é através da compreensão e pesquisa dessa história e do processo de escravidão, que tomamos a consciência de que nossa sociedade ainda se encontra em dívida em relação às pessoas negras, uma vez que, ainda carregamos racismo estrutural, essa discriminação que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes, seja de forma explicita ou falas “habituais” impregnadas em nossos “costumes” como exemplo, a palavra Denegrir, muito utilizada em nosso vocabulário: “DENEGRIR, v.p.d., v.p.r. Tornar(-se) negro ou escuro.” (d‘Oliveira, 2009, p. 607). Almeida em seu livro O Que é Racismo Estrutural? (2018) explica que:

                                                                                                                                        Em uma sociedade em que o racismo está presente na vida cotidiana, às instituições que não tratarem de maneira ativa e como um problema a desigualdade racial irão facilmente reproduzir as práticas racistas já tidas como “normais” em toda a sociedade. (ALMEIDA, 2018, p.37)

O racismo não se prende apenas a um ato, mas sim, em um processo como todo, de vantagens e desvantagens a certos grupos sociais, tudo pertencente a uma estrutura histórica e política. O racismo estrutural se funda na injustiça trazida pelos barcos europeus. Um exemplo disso é a quantidade de negros que vemos ocupando cargos nos parlamentos, empresas, escolas, faculdades, e o número declina ainda mais quando se trata de mulheres negras. Os poucos que ocupam tais cargos e frequentam tais lugares, sofrem, na palavra do autor, “práticas sociais corriqueiras” que nada mais são do que o racismo escondido atrás de piadas, exclusão e silenciamento.

É dentro de uma escola que necessitamos investir na mudança e tentar quebrar ou pelo menos expor toda essa estrutura de preconceitos. A partir da habilidade EM13CHS601 disposta na BNCC, devemos planejar atividades que dialoguem com a cultura africana, indígena, proporcionar debates conscientes possibilitando diferentes visões uma vez que, permite o desenvolvimento do senso crítico em virtude do exercício da cidadania. Trabalhar e expor o verdadeiro sentido da democratização social, se questionar o porquê ainda nos dias de hoje, casos de mortes com pessoas negras são tão corriqueiros.

Portanto, partindo destas colocações se justifica a importância do papel da cultura afro-brasileira e indígena para a democratização social dentro das escolas, é relevante ressalvar a importância de trabalhar interdisciplinarmente figuras negras, atores, pintores, presidentes. É fundamental trazer para os alunos os locais onde essas pessoas ocupam, incentivar o consumo de músicas, obras de arte, filmes que retratam a vida dessas pessoas. Como escola, devemos ser a ponte entre o aluno e a cultura. Como exemplo, as obras de arte da pintora Afro-Cubana Harmonia Rosales, que podem ser utilizadas como matérias culturais pelos professores, pois, é um grande incentivo aos alunos, uma vez que, a autora, de uma forma esplendida, protagoniza os negros em obras de artes já conhecidas, com a Criação de Deus, pintada por Michelangelo, trazer para dentro das salas artistas com Harmonia Rosales, é expandir ainda mais a cultura Afro, é cultivar o interesse dos alunos e mostrar a importância da nossa diversidade cultural.

Em suma, os livros didáticos do sistema educacional brasileiro, nos trazem muitas vezes uma versão distorcida e europeia da nossa cultura, esquecem de dizer que nossas raízes são negras, nosso sangue é indígena, nosso passado é marcado pela escravidão e preconceito. Quando trabalhamos e apresentamos nossa verdadeira herança, asseguramos diversas competências em nossos alunos, ensinamos a eles a democracia, lapidamos a maioridade de Kant, incitamos um futuro cidadão com senso crítico que compreende o preconceito estrutural trabalhado no texto acima, e principalmente, nos livra das amarras de ser uma pessoa alienada. A atividade proposta visa abrir o leque da diversidade, expandir nos horizontes, dar o primeiro passo para a inclusão.

De fato, ainda estamos engatinhando no quesito igualdade, ainda hoje, infelizmente, casos de racismo são notificados, as vezes o crime vem de pessoas desconhecidas, em outras ocasiões são figuras públicas, entidades políticas que praticam e excitam dia após dia o racismo. Até o momento presente, ainda nos deparamos com a injustiça, passeatas e gritos “Black Lives Matter ainda ecoam pelo mundo, e realmente devemos fazer ecoar em nossa sociedade, repercutir em nossa escola, ressoar em nossa sala e assim reverberar em nossos alunos.

 

 

 

 

 

Nota de Rodapé:

²Mestre em História pela Universidade Federal de Goiás UUFG) e professora da Universidade Estadual
de Goiás (UEG).

³Lei n. 1, de 1837, e o Decreto nº 15, de 1839 sobre Instrução Primária no Rio de Janeiro. Artigo 3º São
prohibidos de frequentar as Escolas Publicas: § 1º Todas as pessoas que padecerem moléstias contagiosas.

§ 2º Os escravos, e os pretos africanos, ainda que sejão livres ou libertos.

 Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo. Mestre e Bacharel em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Relacionar as demandas políticas, sociais e culturais de indígenas e afrodescendentes no Brasil contemporâneo aos processos históricos das Américas e ao contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual.

Artista afro-cubana americana de Chicago

“Vidas negras importam” (tradução nossa).

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.

D’ OLIVEIRA, H. Maia. DBI – Dicionário Base Iracema: Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Iracema: Editora Prismática, 2009. 2104 p. ISBN 978-85-7411-021-9

BORGE, Elizabeth Maria de Fátima. A inclusão da História e da Cultura Afro-brasileira e Indígena nos Currículos da Educação Básica. Olimpíada Nacional em História do Brasil, Vassouras, v. 12, n. 1, p. 71 – 84, jan./jun. 2010.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Educação é a Base. Brasília, MEC/CONSED/UNIME, 2017.

ROSALES, Harmonia. “The Creation of God” …we all are created in “Gods image. 17 maio. 2017. Instagram: https://www.instagram.com/honeiee/. Disponível em: https://www.instagram.com/p/BTuPgk3g_RC/. Acesso em: 09 nov.2020.

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, Lei n. 1, de 1837, e o Decreto nº 15, de 1839, sobre Instrução Primaria no Rio de Janeiro. Desenvolvido por ASPHE/FaE/UFPel. Pelotas. 2005. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/asphe/article/viewFile/29135/pdf.

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA CASA CIVIL SUBCHEFIA PARA ASSUNTOS JURÍDICOS. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. LEI Nº 11.645, DE 10 MARÇO DE 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Brasília, 10 mar. 2008.

 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm. Acesso em: 09 nov. 2020.

 

1.       1. Graduanda em Licenciatura Letras Espanhol pela Universidade Estadual do Centro Oeste (UNICENTRO); Graduanda em Licenciatura em Pedagogia pela . Universidade Norte do Paraná.

Fonte: https://www.geledes.org.br/

17/11/2020

 

 

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

AILTON KRENAK: “A MINERAÇÃO NÃO TEM DIGNIDADE, SE PUDESSE CONTINUARIA ESCRAVIZANDO”.

 

Para o ativista, o capital, representado pelas mineradoras, não está interessado em mudar sua conduta para salvar vidas.

 Pedro Stropasolas e Rodrigo Chagas


                                                                    Ailton Krenak


"Eles não respeitam nem os seres humanos que são mais ou menos parecidos com eles, imagina se vão respeitar um rio", diz Ailton Krenak, em referência às mineradoras - Alberto César Araújo/Amazônia Real.      


Indígena nascido à beira do rio Doce, o ativista e escritor Ailton Krenak acredita que a lama não contaminou apenas o Watu, o rio que assume a condição de “entidade”, de “avô” para os Krenak. Foi também a destruição de uma enorme rede de vida.

No dia 5 de novembro de 2015, o rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana (MG), espalhou cerca de 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração em toda a bacia do rio Doce. Além das 19 vítimas e dos 860 hectares de Mata Atlântica destruídos, a lama da Samarco/Vale/BHP atingiu quatro terras indígenas e mais de 43 municípios

O rejeito da mineração contaminou os 675 quilômetros do Rio Doce e seus 113 afluentes. Pelo menos 11 toneladas de peixes morreram.

Na semana em que o crime de Mariana completa cinco anos, Ailton Krenak conversou com o Brasil de Fato sobre a morte do rio Doce e a impunidade de um crime sem reparação e justiça. 

Para Krenak, não é coincidência que o crime tenha tido muito impacto nas populações negras e indígenas da região. Ele relembra a herança escravocrata das cidades minerárias históricas como Mariana e Ouro Preto.

"A mineração não tem dignidade nenhuma não, ela paga salário porque é obrigado, se ela pudesse, continuaria escravizando as pessoas", ressalta.

O líder indígena ressalta que as mineradoras investem muito mais em propaganda "pra fazer uma espécie de lavagem da sua história suja" do que investir em tecnologia pra diminuir o dano ambiental da atividade "que eles continuam fazendo como querem", enfatiza.

“É uma ofensa pras pessoas que perderam familiares, perderam a base de sua subsistência, de sua vida, assistir uma propaganda dizendo que tudo está voltando ao normal”, aponta Krenak sobre a publicidade da Vale e da Fundação Renova e o discurso que estariam “recuperando” a bacia do Rio Doce.

Quanto ao domínio das mineradoras nos municípios mineiros, que se ampliou após o crime, Krenak entende que Minas Gerais e o Brasil integram a plataforma extrativista presente em muitos continentes, onde as corporações “deitam e rolam”. 

“Não é falta de esclarecimento, é a persistência de uma atividade extrativista econômica e que não tem coragem de evoluir, porque se a mineração tivesse coragem de investir e evoluir ela não fazia o dano que ela faz nos lugares onde ela se instala”, argumenta.

Ailton Krenak é militante histórico da causa indígena e ambiental. Participou da Assembleia Constituinte que elaborou a Constituição de 1988 e da Aliança dos Povos da Floresta, idealizada por Chico Mendes. É autor dos livros Ideias Para Adiar o Fim do MundoO Amanhã Não Está à Venda e A Vida Não é Útil.

 

 

LEIA A ENTREVISTA COMPLETA:

 

BRASIL DE FATO:  A partir do crime da Samarco/Vale/BHP, há cinco anos, como se transformou a relação do povo Krenak com o rio Doce, como a destruição impactou a cultura, os laços afetivos e comunitários entre vocês?

 

AILTON KRENAK: Uma enorme rede de vida foi abalada pela lama que desceu da barragem de Mariana numa extensão de mais de 600 quilômetros de lama em alta pressão, com a velocidade do vento, matando e destruindo a paisagem ribeirinha também. Não só a calha do rio, a beirada do rio.

Vocês souberam que, um ano depois, os macacos estavam morrendo e, quando foram colher os restos pra levar pra fazer biopsia, descobriram que eles estavam morrendo porque a cadeia alimentar deles, a cadeia que eles integram tinha sido destruída e eles estavam sendo atacados por uma febre, que chamaram de febre amarela.

Espécies de insetos, de pequenos organismos que viviam da atmosfera do rio, da ecologia do rio, das beiradas do rio, morreram. Elas foram calcinadas pela lama, o que sobrou foram vagas na cadeia ecológica daquela bacia do rio Doce e algumas espécies que se alimentavam da produção do rio migraram ou morreram. As capivaras, que são animais grandes, migraram. Elas deram no pé. Vai completar cinco anos agora que esse evento aconteceu, a lista de espécies da fauna, ictiofauna, que desapareceu e não voltou até agora é reconhecida por universidades e os fóruns que ficaram instituídos como observatórios.

 

“É uma pouca-vergonha a Vale insistir em dizer que está recuperando a bacia do rio Doce”

 

pandemia favorece muito o esquecimento do dano que esse crime ambiental causou na vida de milhares de pessoas e que está sendo minimizado.

Recentemente, a Vale passou a veicular uma campanha de mídia, na televisão, nos horários de novela e tudo, dizendo pras pessoas que está recuperando, restaurando a bacia do rio Doce. Mostra alguns canteiros de obras e mostra imagens de rios com água limpa. Não sei onde eles arrumaram aquelas imagens, sugerindo que as pessoas estão pescando e produzindo,  criando peixe na bacia do rio Doce.

Eu não conheço nenhum lugar onde estão com criatórios de peixe dentro da bacia do rio Doce mas eles mostram isso nos filmes.

As pessoas deveriam pegar o trem da Vale e descer até Vitória. Pode pegar o trem da Vale mesmo pra ver a mentira que ela está fazendo com sua propaganda enganosa. É uma pouca-vergonha a Vale insistir em dizer que está recuperando a bacia do rio Doce. As famílias que estão às margens do rio Doce, muitas delas, não têm nem canal de interlocução com a Renova, com a Vale.

É uma ofensa pras pessoas que perderam familiares, perderam a base de sua subsistência, de sua vida, assistir uma propaganda dizendo que tudo está voltando ao normal. A opinião pública tem que saber que não tem nada voltando ao normal. E nós estamos numa pandemia, e seria cínico dizer que durante esse ano que tudo parou, a Renova, Vale, Samarco, a BHP, estão produzindo tanto resultado assim.

BRASIL DE FATO: Em seu livro Ideias Para Adiar o Fim do Mundo você diz: "O rio Doce, que nós, os Krenak, chamamos de Watu, nosso avô, é uma pessoa, não um recurso, como dizem os economistas. Ele não é algo que alguém possa se apropriar; é uma parte da nossa construção como coletivo". O que é e foi Watu para o povo Krenak?]

 

AILTON KRENAKWatu é uma transcendência do sentido físico material de um rio para uma entidade que é nosso parente. Nós chamamos ele de avô. Então nós conversamos com Watu como você conversa com algum familiar seu, com sua avô, com seu avô, com seu irmão. Quando uma criança nasce, ela é apresentada para esse avô que é o rio e, com trinta dias de vida, os pais dessa criança mergulham o corpinho daquela criança nas águas do Watu pra vacinar ele.

É o entendimento de que aquilo vai blindar a criança, vai proteger a criança contra doenças. Mesmo antes da invenção das vacinas, os nossos antigos acreditavam que tinha eficácia em botar nossas crianças dentro da água, falar com o rio e pedir pra ele proteção para aquelas pessoinhas que estavam começando suas vidas, pra  poderem andar, serem fortes. 

 

“Pessoas sem cultura, sem identidade,- precisam imaginar uma ciência ambiental pra dar conta do estrago que eles estão fazendo na Terra, na vida”

 

Depois essas crianças que se tornavam pessoas saudáveis e fortes continuavam conversando com o rio e pedindo pra ele – “me dá peixe” –, e conversando com ele pra ele dar saúde, comida...

Essa reciprocidade das pessoas do povo Borum, que são os Krenak, com o rio que é Watu, com o território onde nós vivemos, com a montanha, ela não é uma analogia sobre seres vivos e humanos. É uma cosmogonia, é o jeito que esse povo pensa que é o mundo. 

Não é só o rio Doce, é assim que nós pensamos que é o mundo. Com a dissociação da ideia de que o mundo é uma coisa e nós, os humanos, somos outra, nasceu essa abstração que chamam de meio ambiente.

Meio ambiente é uma invenção da cabeça das pessoas que não conseguem viver a experiência de conversar com o rio, com a montanha, de se sentir afiliado ao território onde vive. Então essas pessoas sem cultura, sem identidade precisam imaginar uma ciência ambiental pra dar conta do estrago que eles estão fazendo na Terra, na vida.

BRASIL DE FATO: Nos seus livros mais recentes, você desenvolve ideias que contrapõem princípios do sistema capitalista, como o "tempo não é dinheiro", "o amanhã não está à venda" e "a vida não é útil". A compensação do crime cometido pela mineração está muito associada a distribuir dinheiro a pessoas atingidas. Qual o impacto disso na região?

 

AILTON KRENAK:A razão por que ela está resumida em dinheiro é exatamente porque não foram capazes de confrontar a realidade ambiental, ecológica, a questão de que a bacia do rio já vinha sendo dragada, danada, destruída ao longo dos últimos 100 anos, desde que construíram a ferrovia acompanhando o corpo do rio e passaram a incidir sobre a mata, sobre a vegetação, sobre  a vida selvagem e transformaram o rio em um corpo pelado, um corpo desnudado, pegando sol e pegando tudo quanto é lixo e resíduo da bacia, as cidades jogando seus resíduos lá dentro.

Todo esse dano implicaria em um investimento muito maior, para recuperar ambientalmente a bacia do rio Doce. Então, é moleza transformar isso em compensação financeira. É o jeito fácil de fazer todo mundo esquecer o que aconteceu e seguir a vida – continuar consumindo, continuar afetando cada vez mais a qualidade de vida nos seus próprios territórios.

 

“É uma maneira muito esperta de essas corporações largarem para trás de si um rastro de destruição e dizerem que estão produzindo progresso.”

 

Eu não vejo como um desvio o fato de a única coisa que a Renova esteja fazendo seja pagar em dinheiro o dano que as pessoas sofreram, porque isso aí é o imediato e, provavelmente, para as corporações que praticaram esse crime é uma mixaria o que eles pagam pra essas pessoas.

A dualidade de pensar que tem a empresa e os atingidos é um resumo, é uma maneira de você resumir a conversa. Os atingidos, a gente dá dinheiro, uma compensação financeira pra eles, faz uma vila nova, instala eles lá e está resolvido. É uma maneira muito esperta de essas corporações largarem para trás de si um rastro de destruição  e dizerem que estão produzindo progresso.

Eu costumo dizer que agora estamos vivento uma economia do desastre. Famílias que viviam de subsistência, de uma hora pra outra, passaram a viver da indenização. Essas pessoas deixam as suas vidas e passam a viver uma outra vida, que é a vida de quem vai administrar o dinheiro da indenização. É como se você se aposentasse antes do tempo, como se você tivesse sua vida suspensa e uma vida substituta pra você ir pra fila todo mês pegar dinheiro pagar conta e comprar coisa. É um confinamento.

Daria pra gente fazer um paralelo. Se a gente não tivesse na bacia do rio Doce o risco de contágio pela covid, as pessoas estariam confinadas da mesma maneira: esperando um caminhão-pipa, esperando a cesta básica e esperando o pagamento no dia certo do mês. Quer dizer, eles viraram dependentes de um sistema financeiro que eles não conhecem, que eles não têm capacidade de entender.

 

“Estão causando um dano ao bem comum, a um patrimônio que é do país inteiro, que é do povo brasileiro”

 

É claro que dinheiro vai circular ali. Isso tudo pode mascarar uma situação de uma economia do desastre. Você cria um dano e depois põe dinheiro lá, isso não é novidade. Está cheio de país por ai, fazendo guerra, primeiro joga a bomba no lugar, depois vão lá reconstruir o país.

Agora estamos na fila, eles destroem a bacia do rio Doce, depois destroem a bacia do Paraopeba, e assim vão arregaçando com os rios. O rio São Francisco está sob ameaça de implantar mais uma barragem nele. O rio São Francisco todo mundo sabe que ele está desmilinguindo. Ele está doente e você faz mais uma barragem lá. Quando acontecer qualquer evento que colapse a vida do rio São Francisco, quem vai indenizar as milhares de pessoas que vivem na bacia do São Francisco?

É uma falta de governança, é falta de saber que isso aqui é um país e que as bacias hidrográficas constituem o território brasileiro. Elas não são propriedade particular das mineradoras. Se elas estragarem essas terras, elas devem muito mais do que indenização pra essas famílias. Elas estão causando um dano ao bem comum, a um patrimônio que é do país inteiro, que é do povo brasileiro. Agora, se o povo brasileiro ficou todo idiota e não sabe mais nem ver quando está sendo roubado, então a gente vai ficar na mão dessas corporações.

BRASIL DE FATO: Passados cinco anos, a lógica do capital e da mineração se fortaleceu com o crime de Mariana?

 

AILTON KRENAK: Olha, tudo que é produzido da terra, tudo que é extraído da terra, a água, o minério, a floresta, a madeira, a produção agrícola, tudo isso sofreu um "apertamento", sofreu um estrangulamento. A disputa no mundo inteiro por terra, por água, por floresta, ela é no mundo inteiro, não é só aqui em Minas Gerais não.

Minas Gerais integra essa plataforma extrativista que está em muitos continentes, e que o Brasil é uma delas, onde as corporações deitam e rolam. Aqui é a nossa vez de sermos esmagados por esse tipo de capitalismo que destrói os ambientes e vai pra outro país depois. 

Quando não der mais aqui eles vão pra outro lugar, vão para a Ásia, vão para a China. Então assim nós estamos vivendo no mundo interior uma mudança climática que já deveria ter proibido a atividade da mineração, assim como já deveria ter sido proibida a extração de petróleo. Os combustíveis fosseis e a mineração são duas atividades primitivas e já deveriam ter sidos encerradas no século 21. 

Nós tínhamos que pensar em outras economias pra gente resfriar o clima do planeta, se não nos vamos fritar todo mundo. Quando a temperatura do país chegar ao ponto de começar a matar gente no meio da rua, talvez assim as petroleiras e as mineradoras vão finalmente entender que está na hora de elas mudarem de negócio.

BRASIL DE FATO: “Comunidades de sacrifício”. Assim se refere aos territórios atingidos pelo rompimento da barragem do Fundão, em 2015, a professora Dulce Maria Pereira, da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), que organizou estudos sobre a contaminação das populações por metais pesados e o racismo ambiental presente nas frentes de reparação da Fundação Renova.

A maioria dos distritos destruídos pela lama é majoritariamente negra, indígena, e estava nos territórios antes da exploração minerária e da construção da barragem. Você concorda com a análise de Dulce? A exploração minerária e a construção de barragens são escolhidas pelas mineradoras em áreas onde vivem populações que podem ser “exterminadas”?

 

AILTON KRENAK:Não podemos esquecer que Mariana é um povoado histórico. Mariana e Ouro Preto foram as primeiras capitais do Brasil. Elas foram sedes do governo colonial tão importantes quanto Potosí, para implantar o colonialismo aqui.

Não é novo o histórico de abuso e de violência contra as comunidades originárias, os povos indígenas, e depois os afrodescendentes e mesmo os africanos que foram trazidos como escravos pra cá. É bom não nos esquecermos que a matriz da mineração no Brasil é escravocrata. Quem furou as lavras de ouro nos séculos XVII e XVIII foram os negros escravos, foram os índios também quando eles conseguiam manter os índios presos.

Essa piada de que os índios não gostavam de trabalhar, ela nasceu da observação dos capatazes, que viam que os índios escapavam ao controle deles, porque conheciam o território e porque tinham relações com outros locais onde eles podiam se refugiar. Os negros demoraram para poder constituir as rotas de quilombos, que eram lugares de difícil acesso onde eles podiam fugir do controle dos capatazes da mineração.

A mineração não tem dignidade nenhuma não, ela paga salário porque é obrigado, se ela pudesse, continuaria escravizando as pessoas.

 

“Nenhum deles veio a publico pedir desculpa pelo que aconteceu”

 

Aqueles corpos não importam, se a barragem passar em cima e matar todo mundo não tem problema nenhum, porque historicamente esses corpos nunca existiram. Nunca foi gente que morou naquelas vilas. Pros mineradores quem estavam lá eram os escravos. E escravo só tem valor quando está com saúde e trabalhando. Na história colonial do Brasil, um corpo não vale nada se ele não estiver produzindo

Aqueles patrimônios, aquelas vilas que foram destruídas e as pessoas foram assaltadas dentro de casa de noite, morrendo debaixo de lama, aquele evento não tem importância nenhuma do ponto de visto ético, do ponto de vista moral pros gerentes, pros grandes financiadores dessa atividade e, finalmente, pros seus chefes, CEO, diretores.

Tanto que nenhum deles veio a publico pedir desculpa pelo que aconteceu. Pelo contrário, quando houve audiência pública na assembleia aqui de Minas Gerais, o presidente da Vale escarneceu das famílias dizendo: "Bom, pra que desenterrar esses corpos se eles já morreram mesmo?"

Esse tipo de declaração, gente, é um tipo de declaração que está bem constituída na mentalidade dos administradores de garimpo e mineração desde a colônia. Vocês acham que essas empresas mineradoras bonitinhas cheias de tecnologias modernas mudaram de ideologia?

No final do século XIX, tinha um sujeito que era muito escutado por todo mundo aqui em Minas Gerais. Ele disse que a mineração só dá uma safra. Você tira, e aquilo que você tirou não se repõe, acabou. Principalmente se você botar em cima de um trem e mandar pro porto e botar em um navio. Aí acabou e foi pra longe – fica um buraco no lugar.

O Drummond passou a vida inteira dele dizendo que tinha um buraco onde ele vivia, que é Itabira. Itabira é um buraco. Você pensa que as mineradoras têm vergonha de ter transformado Itabira em um buraco? Não, pelo contrario, elas fazem introjetar na mentalidade dos moradores desses lugares como se ela tivesse ali pra favorecer as pessoas, proteger as pessoas, levar progresso pras pessoas.

Quem leu Drummond, vê o Drummond falando há 60 anos, o que as mineradoras estavam fazendo em Itabira e nas outras montanhas de minas gerais.

 

 BRASIL DE FATO: Vocês acham que essas empresas mineradoras bonitinhas cheias de tecnologias modernas mudaram de ideologia?

 

AILTON KRENAK:Não é falta de esclarecimento, é a persistência de uma atividade extrativista econômica e que não tem coragem de evoluir, porque se a mineração tivesse coragem de investir e evoluir ela não faria o dano que ela faz nos lugares onde ela se instala.

Mas se você pegar um diretor deles, um desses espertalhões, ele vai dizer pra você que eles nunca investiram tanto, que tem tecnologia de última geração e que a mineração que eles fazem é limpa, e eles botam outdoor para todos os lados dizendo que é sustentável.

Eles investem muito mais em propaganda pra fazer uma espécie de lavagem da sua história suja do que investir em tecnologia pra diminuir o dano ambiental da atividade que eles continuam fazendo como querem.

Todo mundo sabe que as barragens são obsoletas, malfeitas e que têm duração. Só eles é que não sabem, só os engenheiros é que não sabem. Qualquer morador da bacia do rio Doce sabe que essas barragens têm uma hora que elas estouram e derramam em cima de quem tá pra baixo. Os engenheiros precisavam voltar pra escola, então, pra aprender isso.

 BRASIL DE FATO: E, do ponto de vista dos indígenas, dos Krenak, como resistir a esse cenário de ampliação da hegemonia das mineradoras nos territórios?

 

AILTON KRENAK:Não tem só cinco anos que os Krenak enfrentam a mineração. Na década de 1920 do século passado, o governo da província de Minas Gerais separou uma reserva pras famílias que ainda estavam circulando na floresta do rio Doce pra ir pra dentro da reserva e liberar o entorno do nosso território para passar estrada de ferro.

Essa estrada de ferro aí, a Vitória-Minas, ela passou dentro do nosso território, ela atropelou muitos índios que nem sabiam o que era um trem, quando estavam abrindo a estrada. A manutenção daquela ferrovia sempre foi um ônus pro território e pra vida do povo Krenak. 

Quando nós fechamos a estrada de ferro em 2005, não foi por causa da barragem. Nós fechamos a estrada em 2005 por causa do licenciamento adulterado da hidrelétrica de Aimorés. Essa barragem foi construída pra atender a demanda de energia da Vale do Rio Doce, e nós sabíamos disso. O povo Krenak fechou a ferrovia. Foi um escândalo. Isso foi dez anos antes da lama.

Não é de hoje, não é de ontem não. Nós estamos denunciando e enfrentando a arrogância das mineradoras desde que foi criada a reserva pra gente viver em um lugar onde eles estão predando o entorno todo. Se você olhar o Mato Grosso, lá onde está o Parque Nacional do Xingu, o Xingu é uma ilha de mata cercada de terra pelada por todos os lados pelos parceiros da mineração que é o agronegócio: hidroelétricas, mineração e agronegócio.

Estão destruindo os rios, destruindo os aquíferos, acabando com a vida das pessoas com uma atividade "vencedora", com uma atividade que acha que tem que ganhar um prêmio por causa disso. 

São atividades de exportação, que não acrescentam nada a economia do Brasil. Os municípios que cedem territórios pras mineradoras, eles ganham uma mixaria. A sociedade tinha que botar em questão essas atividades predatórias e insustentáveis e essa enganação que é a propaganda de que eles estão promovendo o progresso. 

Se a Vale estivesse promovendo o progresso, Minas Gerais não seria um estado tão atrasado socialmente, economicamente em relação aos outros estados brasileiros.

BRASIL DE FATO: A resistência da cultura indígena e dos povos indígenas é de mais de 500 anos. Um momento marcante da tua trajetória pessoal é ter participado do processo de elaboração da Constituição de 1988, um marco importante para a luta pelos direitos indígenas.

Agora a luta do povo Xonkleng está no STF e vai definir a validade ou não do chamado "marco temporal", que põe em xeque demarcações de território no Brasil. O julgamento foi novamente adiado, o que, na avaliação das organizações indígenas, pode ser uma manobra articulada por ruralistas para tentar manter o "marco temporal" em vigor. Como você avalia esse momento de luta pela pela permanência nos territórios?

 

AILTON KRENAK: Essa situação que vivemos nos últimos 30 anos, desde que temos a Constituição de 1988, ela reflete uma disputa constante entre as atividades da expansão econômica do capitalismo sobre territórios que deviam ser protegidos pela União, independente de serem terras indígenas ou não.

Os índios não têm terra. A terra que nós habitamos são terras da União, a Constituição diz isso. É oportunismo e cínico quem disputa território com os índios dizerem que estão em pé de igualdade. Eles não estão em pé de igualdade. Eles são particulares que estão querendo se apropriar de bens comuns, da terra publica.

 

“A historia do Brasil é isso, os particulares se apropriando do que é comum e virando dono”

 

Quando eu disse que o rio Doce ao ser destruído é um dano ao bem comum, um dano ao patrimônio do Brasil, patrimônio do povo brasileiro, eu digo também que quem disputa terra com povo indígena são criminosos que querem roubar patrimônio da União. E dentro do estado brasileiro, eles têm cumplices que apoiam as suas ações criminosas.

Mas você tem gente dentro do estado operando o sistema jurídico brasileiro que dá sustentação pra esse tipo de contrabando. De você pegar bens do estado, bens da União e transformar em propriedade privada. A historia do Brasil é isso, os particulares se apropriando do que é comum e virando dono. Viram donos de ilhas, viram donos de beira de rio, viram de dono de margem de rodovia, viram dono de terras devolutas na Amazônia, dando golpe.

Quem deveria estar protegendo esses territórios era a União? O Estado brasileiro. Mas o Estado brasileiro está dominado pelo interesse privado que quer vender tudo, quer vender a Petrobras, quer vender o pré-sal, quer vender o SUS [Sistema Único de Saúde], quer vender a mãe deles. Então, o que a gente vai fazer? O povo indígena continua resistindo do mesmo jeito, tem 500 anos, não começou ontem não.

BRASIL DE FATO: De que forma a matriz de pensamento indígena pode contribuir ou ser decisiva para salvar esse futuro?

 

AILTON KRENAK:Seria talvez um exagero imaginar que depois de uma história tão predatória e a constituição, a formação de uma sociedade desigual, complexa e desigual como a brasileira que o pensamento, que a perspectiva dessa minoria que são os povos indígenas, pudesse criar mudança nesse mundo, onde a infraestrutura e a governança da coisa é feita por não-indígenas.

Eles não respeitam nem os seres humanos que são mais ou menos parecidos com eles, imagina se vão respeitar um rio.

 

“As pessoas estão interessadas em se dar bem, que é diferente de bem viver”

 

As coisas vão de mal a pior não é por falta de conhecimento, as coisas vão de mal a pior é por causa de uma ideologia, é uma ideologia individualista, que dá prêmio para meritocracia, que estimula competição e que não está interessada em aprender a viver bem. As pessoas estão interessadas em se dar bem, que é diferente de bem viver.

O pensamento indígena é o pensamento do bem viver e a sociedade estimula o se dar bem, então está cheio de gente que só quer se dar bem. O empreiteiro quer se dar bem, o diretor da mineração quer se dar bem, o cara que dá licença fajuta quer se dar bem, o membro do conselho que deveria votar sim ou não quer se dar bem. 

Como toda essa cadeia cooperativa entre si quer se dar bem, vai demorar muito pra eles darem ouvido a um pensamento dos povos originários, de que a terra é nossa mãe e que a gente precisa respeitar a vida para além do humano. Não é só gente, homem, que vive. Eles não respeitam nem os seres humanos que são mais ou menos parecidos com eles, imagina se vão respeitar um rio.

Então, meus amigos, é necessário ver que o povo indígena é uma minoria ínfima e pretender que o povo indígena vá influenciar essa maioria escandalosa predatória seria querer muito, né? Tomara que a gente consiga, pelo menos, ficar vivo – que já seria uma vitória.

 

 

 

 

 

Fonte: https://www.brasildefato.com.br/

Edição: Leandro Melito