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sexta-feira, 31 de julho de 2020

REVISITANDO A NOSSA HISTÓRIA PELA LENTE DOS VENCIDOS





Trechos do Cordel: REVISITANDO A NOSSA HISTÓRIA PELA LENTE DOS VENCIDOS 

Luiz Cláudio &   Rodrigues  Neto.


I

A minha grande missão

Todos os dias, toda hora,

É sempre lembrar ao povo

Que tivemos em outrora

Um incansável guerreiro

Que o almado por ele chora! ...

II

Sabe-se pouco desse ícone,

É nosso irmão brasileiro

Nasceu no maior quilombo,

Esse sagrado celeiro

Que foi lar e fortaleza

Do homem virtuoso e obreiro! ...

III

Esse quilombo meu irmão

É o quilombo de Palmares

Localizado na serra

Um espaço de bons ares:

– Nossa serra da Barriga,

Lá fizeram muitos lares! ...

IV

Era um lugar afastado

Ficava entre dois estados

Alagoas e Pernambuco

Lá foram os humilhados

Fugindo dos coronéis

Esses seres depravados! ...

V

Era uma terra bem fértil

Com vegetação abundante

E bastante palmeirais,

Daí esse espaço importante

Ser chamado de Palmares,

Pois, num verso triunfante...

VI

Digo com sabedoria,

É fato na nossa História

Que o século dezesseis (XVI)

Vivenciara com glória

Uma batalha ferrenha

Com altivez e simplória...

VII

De um povo que lutava

Por sua libertação

Abrigando-se em Palmares,

Fugindo da escravidão

Do engenho Pernambucano,

Que a tortura era a lição! ...







quarta-feira, 22 de julho de 2020

MÍDIA NEGRA: CONHEÇA CINCO (5) BLOGS, SITES E PORTAIS ANTIRRACISTAS.


Veículos têm material produzido com base nas reflexões sobre o racismo e seus impactos na sociedade

Iyalê Tahyrine


A imprensa negra, a comunicação popular e outros grupos se propõem a trazer uma nova perspectiva sobre a realidade da população brasileira - Janine Moraes


O primeiro jornal oficial brasileiro foi criado em 1808, o Gazeta do Rio de Janeiro. A principal finalidade do meio era difundir os interesses da Coroa Portuguesa. Desde então, foram se conformando os grupos midiáticos familiares que permanecem até hoje no Brasil, com a formação dos veículos de comunicação atrelada ao pensamento das classes dominantes.
O fato da mídia ter sido conformada dessa maneira no Brasil implicou em uma predominância do formato de comunicação comercial, visando o lucro e de caráter elitista, racista e machista. Por outro lado, no contraponto dessa mídia comercial, surge a imprensa negra, a comunicação popular e outros grupos que se propõem a trazer uma nova perspectiva sobre a realidade da população brasileira.
Na série de dicas do Brasil de Fato Pernambuco de hoje, listamos cinco sites, blogs e portais organizados por pessoas negras e que se propõem a trazer notícias, artigos, reflexões e uma outra visão sobre as questões que envolvem a população negra no Brasil e no mundo.
O Portal Geledés é organizado pelo Geledés - Instituto da Mulher Negra,que é uma organização política brasileira de mulheres negras fundado em 1988 que vem desde então encampando a lutra contra o racismo e o sexismo. Seu nome deriva do conceito de gelede, sociedades secretas femininas na cultura iorubá. É uma das maiores ONGs de feminismo negro do Brasil com várias campanhas e ações significativas contra o racismo.
Criado em 2015 por um grupo de jovens comunicadores da Universidade Estadual Paulista (UNESP), o Alma Preta é uma agência de jornalismo especializado na temática racial do Brasil. O site do Alma Preta envolve reportagens, coberturas, colunas, análises, produções audiovisuais, ilustrações e divulgação de eventos da comunidade afro-brasileira.
O CEERT é uma organização não-governamental brasileira fundada em 1990. A ONG declara procurar garantir os direitos da população negra apoiando a luta pelo fim das desigualdades étnico-raciais e o preconceito existente na sociedade brasileira. Além disso, desenvolve e executa projetos voltados para a promoção da igualdade de raça e gênero.
O projeto Blogueiras Negras nasceu em março de 2012, mais precisamente no dia 8, Dia Internacional da Mulher. O intuito do projeto desde o início era ser referência para as mulheres de ascendência africana e aquelas que se identificam com o feminismo e a luta antirracista das mulheres negras. Atualmente conformam uma comunidade online com mais de 1.300 mulheres. O blog é o veículo de comunicação produzido coletivamente para dialogar com todas as mulheres negras e afrodescendentes, mas também com todas as mulheres que partilham a luta feminista e antirracista.
Para quem gosta de arte e literatura, o Resistência Afroliterária nasceu com o intuito de ser um espaço de divulgação e exposição de arte negra. No site é possível encontrar análises, resenhas, divulgações, indicações, reflexões e notícias sobre literatura e cultura feita por e para pessoas negras.



Brasil de Fato | Recife (PE) | 18 de Junho de 2020

Edição: Raquel Júnia e Vanessa Gonzaga




O CENTENÁRIO DE FLORESTAN FERNANDES, UM TEÓRICO A SERVIÇO DA CLASSE TRABALHADORA.

O sociólogo que levou sua origem de classe para os livros viu a revolução como essencial para transformação do Brasil

Caroline Oliveira

 Como deputado, Florestan Fernandes foi defensor do financiamento público da educação e responsável pela parte da Constituição de 1988 que trata da autonomia das universidades - Arquivo da família da)

Quando Florestan Fernandes terminou o curso de Ciências Sociais, em 1944, não saía da Universidade de São Paulo (USP), um sociólogo formado somente pelos livros. A sociologia, na verdade, chegou para Florestan primeiro por meio do trabalho, e somente depois pela reflexão. Esta é uma formulação do próprio sociólogo que permeia toda a complexidade e totalidade de seu pensamento. 

Filho único de Maria Fernandes, portuguesa que chegou ao Brasil para trabalhar no campo aos 13 anos de idade, Florestan nasceu em 22 de julho de 1920 e viveu os primeiros conflitos de classe dentro da casa da família Bresser, onde a mãe trabalhou como empregada doméstica, no município São Paulo (SP). Os poucos anos ali bastaram para Florestan entender que a casa, para ele e sua mãe, era do quarto onde dormiam, no quintal, somente até a cozinha. Dali para frente, a barreira só podia ser transpassada com a permissão e o acompanhamento de um dos Bresser.

Permissão, a mesma, que não lhe foi solicitada para ter o nome trocado pelos donos da casa. Florestan, o nome de um personagem da ópera Fidelio, de Ludwig van Beethoven, não era cabível para o filho de uma empregada doméstica. Chamavam-no, então, de Vicente, que consideravam mais apropriado. “Também o nome ele não podia ter”, conta Florestan Fernandes Júnior, filho do sociólogo e jornalista.

O ponto final da experiência na casa Bresser – que anos mais tarde ele considerou essencial do ponto de vista sociológico – se deu quando os patrões pediram a Maria Fernandes que entregasse Florestan a eles. A portuguesa respondeu “só cachorro que se dá”, pegou suas coisas e foi morar em cortiços. 

 

“A maior luta dele durante a vida foi não se afastar de suas origens.”

 

Diante da situação, Florestan, aos seis anos de idade, começou a trabalhar como engraxate, para ajudar na sobrevivência da pequena família. “Assim foi vida deles, vivendo com condições precárias. Todo o aprendizado dele vem desse período e ele nunca se afastou. Ele falou até que a maior luta dele durante a vida foi não se afastar de suas origens”, relata o filho. Somente aos 17 anos, depois de passar por diversos empregos, Florestan retomou os estudos, fez um curso de madureza para concluir o que hoje se conhece por Ensino Médio e ingressou na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH-USP).

Para Miguel Yoshida, editor da Expressão Popular, compreender a origem de classe de Florestan é “fundamental” para compreender todo o seu desenvolvimento teórico. “Por mais que por durante boa parte da vida ele estivesse ligado à universidade com ocupações acadêmicas, ele nunca perdeu essa perspectiva de olhar para o mundo e para a condição dos ‘de baixo’, nunca esteve fora da perspectiva dele”. Prova disso, diz Yoshida, são os temas sobre os quais ele teorizou: a questão racial e de classe, majoritariamente.

Burguesia dependente e a prática revolucionária

A partir desse olhar, Florestan Fernandes constrói uma conexão entre pensamento e prática que permanece por todo o seu trabalho como uma tarefa política. O objetivo: fornecer as ferramentas necessárias para a classe trabalhadora conseguir transformar a própria realidade.

“A preocupação central dele nos últimos 20 anos de vida é de conseguir construir uma compreensão do País que possibilite a transformação dele. Então, a teoria do Florestan nos últimos 20 anos se dedica a isso, a essa construção dessa teoria da revolução brasileira”, explica Yoshida.

O primeiro passo para a construção dessa prática revolucionária foi entender a origem das classes sociais no Brasil. Para estudar o comportamento das classes dominantes, Florestan estudo os anos da escravidão e demonstrou como a transição da Colônia até a República, incluindo a abolição da escravatura, ocorreu sem rupturas institucionais de fato. O sociólogo identifica a manutenção do padrão de dominação de classe, com o cultivo de heranças escravocratas refletidas nas dinâmicas sociais do país.

 

“Não tem uma possibilidade nacional de desenvolvimento autônomo.”

 

Diferente de outras ao redor do mundo, segundo a leitura de Florestan, a burguesia brasileira não precisou realizar uma revolução para concretizar o modo de produção capitalista. Aqui, o capitalismo e as dinâmicas imperialistas e de escravização se entrelaçaram para fazer surgir o que ele chama de "capitalismo dependente". 

Tal dependência faz com que a burguesia brasileira precise realizar concessões ao capitalismo central para conseguir manter qualquer tipo de relação, uma vez que não está “no mesmo pé de igualdade”. Hoje, isso se observa na desindustrialização do Brasil e na condição de exportador de commodities.

Apoiado nesta ideia, Florestan defendia que “o desenvolvimento aqui não tem uma possibilidade nacional de desenvolvimento autônomo, não tem um desenvolvimento autônomo, ele vai estar sempre atrelado às demandas desse capitalismo central”, explica Yoshida.

Nesse sentido, a proposta política da burguesia nunca abarcará as transformações necessárias para o desenvolvimento social do País, como as reformas agrária e educacional. Ao contrário, na mesma medida em que é submissa ao capitalismo central, submete as classes trabalhadoras com violência, nos mesmos moldes escravocratas.

A construção de um país pautada em reformas agrária e educacional, coloca Florestan, é tarefa, portanto, dos trabalhadores. E é aqui que entra a prática revolucionária e a educação como um dos pontos de partida para tal movimento. 

Educação para a auto emancipação dos trabalhadores

Durante toda a vida, Florestan se preocupou intensamente com o tema da educação e defendeu um ensino gratuito, laico e de qualidade – não somente uma formação técnica, mas uma ferramenta de transformação social. Com acesso ao conhecimento acumulado pela humanidade e à prática militante, é possível alcançar a prática revolucionária e mudar as bases sobre as quais as classes dominantes se ergueram, defendia Florestan.

 

“Ele valorizava demais esse lado do conhecimento, do letramento, do direito à educação.”

 

Nesse sentido, já na última década de sua vida, enquanto foi deputado (1987-1995) pelo Partido dos Trabalhadores (PT), Florestan ajudou a criar as bases do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) bem como os princípios constitucionais da educação brasileira, na Assembleia Constituinte. 

Segundo o deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP), que trabalhou o tema da educação ao lado de Florestan Fernandes na Assembleia Constituinte, o sociólogo foi responsável pela elaboração do capítulo da Constituição que trata da autonomia das universidades e das garantias de uma educação de qualidade. 

“Ele virou a grande referência de todos os movimentos sociais e educacionais, no Congresso Nacional. Ele foi grande a referência para a construção de uma visão constitucional da educação como dever do Estado e direito do cidadão”, afirma Valente.

“Claro que Florestan é um socialista marxista, alguém que tinha conhecimento de que o pior analfabeto é o analfabeto político. Então, ele valorizava demais esse lado do conhecimento, do letramento, do direito à educação e do que significa conseguir universalizar a educação básica e ao mesmo tempo garantir a qualidade da educação com financiamento público de qualidade”, a fim de mitigar as desigualdades sociais. Para Valente, falar de Florestan Fernandes hoje, “é se contrapor a essa imensa mediocridade que nós estamos vivendo com a era Bolsonaro”.

“Debaixo do meu guarda-chuva cabem todos os radicais”

Amigo próximo do sociólogo, o jornalista Vladimir Sacchetta relembra uma frase que sintetiza significativamente quem foi Florestan Fernandes e como ele vivia de acordo com o seu objetivo de transformar o País: “Florestan era o Florestan, ele era uma bandeira em si”.

 

“O papel do intelectual era ser contestador e enfrentar as dificuldades e empregar as suas ferramentas teóricas sem nunca abandonar do horizonte a possibilidade de ter uma transformação social.”

 

Durante a sua campanha para deputado constituinte, da qual Sacchetta fez parte, o lema era “Contra as ideias da força e a força das ideias”, o que sintetiza bem uma campanha que agregou pessoas de diversas origens e espectros ideológicos. 

“Volta e meia aconteciam tensões no PT, e Florestan vinha daquele jeito doce, gentil, educado, um homem sisudo, aparentemente, com aquela sobrancelha que vinha por cima dos óculos, mas um ser humano muito doce, e dizia o seguinte: ‘Opa, espera aí, debaixo do meu guarda-chuva cabem todos os radicais’”, conta Sacchetta.

O engajamento para a transformação social nunca deixou que Florestan saísse de fato da política, mesmo dentro das universidades, onde praticava uma sociologia crítica e militante.

“O papel do intelectual era ser contestador e enfrentar as dificuldades e empregar as suas ferramentas teóricas sem nunca abandonar do horizonte a possibilidade de ter uma transformação social e da criação de um mundo mais justo, mais livre e mais feliz”, afirma Sacchetta.

Em 1969, durante a ditadura militar brasileira, o preço pago foi a aposentadoria compulsória com a publicação do AI-5, quando Florestan, então, decide se exilar nos Estados Unidos e no Canadá, onde foi professor titular na Universidade de Toronto. Florestan Fernandes Júnior relata que foi um momento de “muitas incertezas” para a família.

Em cartas escritas ao escritor e sociólogo Antônio Candido, um de seus amigos mais próximos, Florestan dizia não aguentar mais o exílio e que, se fosse para morrer, preferia voltar e morrer lutando. No fim, Antônio Candido sempre o convencia a esperar mais um pouco. 

Florestan volta ao Brasil, em 1972, mas só consegue voltar a dar aulas em 1978, quando Dom Paulo Evaristo Arns, o terceiro grão-chanceler da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o reabilita, mesmo com a pressão dos militares para não fazê-lo. 

Tempos depois, ele parte definitivamente para a política partidária dentro do PT. “Ele aceita e diz para mim: ‘Filho, eu esperei a vida inteira por um partido de esquerda que nunca surgiu. Eu acho que não vou ter tempo de vida para esperar mais. Acho que esse partido não vai chegar tão cedo. E de todos os partidos que têm no Brasil hoje eu acho que o que está mais próximo daquilo que eu considero um partido progressista, de esquerda é o PT, por isso eu me filiei a ele e vou concorrer’”, relembra Florestan Fernandes Júnior.

A atualidade do pensamento de Florestan Fernandes

Outra missão assumida pelo sociólogo foi a construção uma frente democrática entre os partidos de esquerda e de enfrentar o autoritarismo. Ele dizia que boa parte dos progressistas acreditaram que tinham derrotado o nazismo e fascismo quando caíram Adolf Hitler e Benito Mussolini. 

Estavam enganados, afirmava Florestan. “O fascismo nunca morreu. Ele falava que o fascismo é o braço armado do capitalismo. Sempre que o capitalismo se sente ameaçado, esse braço aparece. E é isso que a gente está vendo hoje no Brasil em alguns outros lugares do mundo”, relembra Florestan Fernandes Júnior.

Hoje, com Jair Bolsonaro (sem partido) na Presidência da República, bem como Donald Trump nos Estados Unidos, Boris Johnson no Reino Unido, Andrzej Duda na Polônia, entre outros conservadores e ultraconservadores, Florestan Fernandes procuraria descobrir quais erros levaram ao cenário atual, acredita Vladimir Sacchetta. 

Esse era o perfil de atuação de Florestan dentro do PT, relata Sacchetta, onde ele questiona se a sigla irá se transformar um partido da ordem ou contra a ordem. “Ele discutia muito essa institucionalização do PT”, assim como as concessões feitas em nome da governabilidade em detrimento de ganhos para o povo, dentro do seu espectro da extrema esquerda.

“Talvez essa questão da nossa atualidade passasse por aí: onde a esquerda errou? Porque as reformas não foram aprofundadas?”, argumenta o jornalista, relembrando a defesa de Florestan sobre a formação de uma frente única de esquerda. “É justamente o que falta hoje”, resume.

Atualmente, Florestan Fernandes também permanece vivo na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), em Guararema, São Paulo, idealizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em 2005. “Um espaço construído pela classe trabalhadora, tijolo a tijolo, para possibilitar a formação política de organizações populares de todo o mundo”, informa o movimento. 

Para Sacchetta, que também faz parte da Associação dos Amigos da Escola Nacional Florestan Fernandes, a escola do nome não poderia ser tido melhor. “Ele está lá. Na escola, moram as minhas utopias. A última morada do Florestan. Basicamente, ele é o reitor da escola e figura emblemática que inspira a luta do MST, que é o movimento social mais importante que a gente tem, do país, da América Latina e, quem sabe, do mundo”, conclui.

 

 

 

 

 

 

 

Brasil de Fato- São Paulo (SP) - 22 de Julho de 2020

 Fonte: https://www.brasildefato.com.br/


segunda-feira, 20 de julho de 2020

NÃO HÁ COMO CONVIVER MAIS 2 ANOS COM UM GOVERNO GENOCIDA", DIZ FREI BETTO



Frei Betto: Frade dominicano é autor da obra "O diabo na corte - Leitura crítica do Brasil atual”, que aborda os processos que levaram Bolsonaro à presidência - Foto: Rodrigo Buendia/AFP

O escritor e assessor da FAO para soberania alimentar comenta o avanço da fome e a crise sociopolítica no Brasil

Lu Sudré

                                                 Frei Betto Foto: Rodrigo Buendia/AFP



Crescimento exponencial da fome, altos índices de desemprego, precarização do trabalho e mais de 74 mil vidas perdidas em meio à pandemia do coronavírus. Esses são alguns elementos da realidade brasileira que, na opinião de Frei Betto, renomado escritor e frade dominicano, explicitam uma “política de morte” protagonizada pelo governo de Jair Bolsonaro.


Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Frei Betto analisa o atual contexto político e socioeconômico do Brasil, agravado pela crise sanitária em decorrência da covid-19.
“Todas as medidas de proteção da vida dos mais pobres estão sendo totalmente desmontadas em uma política intencional de genocídio. Isso exemplificado nessa semana, quando o presidente veta o dispositivo da lei de precauções sanitárias, que previa a doação de máscaras para pessoas presas”, afirma o escritor, citando Cuba e Vietnã como países que adotaram as medidas de precaução necessárias para proteger a população. 
“Aqui não. Aqui, realmente, o governo é cúmplice do genocídio e dessa mortandade”, endossa o autor O diabo na corte - Leitura crítica do Brasil atual, publicado pela Cortez Editora. 
O cenário tende a se agravar. Segundo documento da Oxfam divulgado na semana passada, até 12 mil pessoas podem morrer por fome diariamente, até o final de 2020, devido às consequências da pandemia. Ao lado da Índia e da África do Sul, a organização aponta o Brasil como um provável epicentro da fome no mundo.
Dados do relatório O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo 2020, desenvolvido pela Organização das Nações Unidas (ONU), registram que, em 2019, 43,1 milhões de brasileiros enfrentaram a insegurança alimentar severa e moderada.
Para Frei Betto, que é assessor da FAO para soberania alimentar e educação nutricional, o fato de milhões de brasileiros estarem à beira da fome é resultado do desmonte das políticas e dos mecanismos de proteção social que tiraram o Brasil do Mapa da Fome.
“É óbvio que os que nos levou a alcançar essa marca foi a falta de uma política de segurança alimentar do ‘governo Bolsonero’, considerando o genocídio que se produz nesse país, especialmente em cima do surto do novo coronavírus”. O termo Bolsonero é uma referência ao imperador romano que entrou para a história por ter mandado incendiar Roma. 
“É muito difícil que o Brasil continue fora do Mapa da Fome. Nós estamos em uma situação séria. A única solução hoje, como tem sido adotada agora na pandemia, é a mobilização social. Isso tem que ser intensificado. Como dizia Betinho, a fome tem pressa”, defende o assessor da FAO.
Ele é enfático ao defender o que deve ser feito para impedir o avanço das políticas do governo: “No momento que a pandemia cessar, vamos para rua. Não tem outro jeito. Vamos ocupar as ruas como já tinha começado no início da pandemia, para manifestar a nossa insatisfação e tentar mudar esse quadro político. Não há como pensar na possibilidade de conviver mais dois anos e meio com um governo genocida.” 
Confira a entrevista na íntegra.

Brasil de Fato - Em 2019, 43,1 milhões de pessoas foram afetadas pela insegurança alimentar moderada e severa no Brasil. É um contingente muito grande de pessoas. O que nos levou a chegar a essa marca?

Frei BettoIsso é mais do que a população da maioria dos países da América Latina. É óbvio que os que no levou a alcançar essa marca foi a falta de uma política de segurança alimentar do governo Bolsonero, considerando o genocídio que se produz nesse país, especialmente em cima do surto do novo coronavírus. 
Ou seja, no dia em que estamos falando, 73 mil pessoas, desde março, faleceram por descaso do nosso governo. Quando penso que em um país como Cuba, faleceram 86 pessoas, em um país como o Vietnã, nenhuma pessoa, porque os governos tomaram as medidas de precaução... Aqui não. Aqui, realmente, o governo é cúmplice do genocídio e dessa mortandade. 
Há várias políticas para salvar vidas que foram articuladas no Brasil durante os 13 anos do governo do PT e todas elas estão sendo desarticuladas e desmontadas. Isso vale para a questão trabalhista, previdenciária, proteção dos povos indígenas, dos quilombolas. 
Todas as medidas de proteção da vida dos mais pobres estão sendo totalmente desmontadas em uma política intencional de genocídio. Isso exemplificado nessa semana, quando o presidente veta o dispositivo da lei de precauções sanitárias, que previa a doação de máscaras para pessoas presas. 
E já são mais de 700 presos infectados no Brasil, inclusive um deputado que estava preso lá no Paraná, Meurer, primeiro condenado da Lava Jato. Preso, 78 anos, morreu antes de ontem. Já são 72 presos mortos. Quando o presidente assina um decreto vetando que se distribua máscara, uma coisa muito simples, é porque ele quer que os presos morram. Não é que isso representa um gasto, é porque para ele, "bandido bom é bandido morto". Exatamente o lema dos esquadrões da morte, das milícias, dos gabinetes de ódio.
Eu creio que a razão do aumento da insegurança alimentar no país e das pessoas em situação de fome, é em decorrência da falta de uma política de atenção básica da nossa população.
O que é mais grave é que mesmo esse auxílio emergencial não é suficiente. Primeiro, 70 milhões de pessoas se alistaram, muito mais que o previsto, o que revela que existe um contingente de pessoas em extrema pobreza muito maior do que se pensava. Segundo, dessas, os recursos chegaram a apenas 49%. Ou seja, há uma margem de recursos que foi destinado para os mais pobres, teoricamente, no papel, e não chega a eles.
E terceiro, muitos oportunistas, bandidos, corruptos e aproveitadores, inclusive recrutas e oficiais das Forças Armadas. Muita gente que não merece se inscreveu e recebeu. Enquanto inúmeros outros que necessitam, precisam, estão na extrema pobreza, por conta da burocracia, falta de internet, pessoas desprovidas desses recursos tecnológicos, ficam sem receber. 
Brasil de Fato - Em relação às políticas que ajudaram a retirada do Brasil do Mapa da Fome, qual o peso de programas como o Bolsa Família, por exemplo? Como o senhor avalia a forma que o governo lida com esse programa?

Frei BettoEle lida constrangido. Primeiro, ele gostaria que esse programa não existisse. Segundo, ele se sente constrangido por esse programa não ter sido uma criação dele, foi uma criação do PT. Que primeiro criou o Fome Zero onde eu trabalhei. Depois o Fome Zero ganhou o nome de Bolsa Família quando houve uma mudança de sua estrutura.
Devo dizer mudança da qual discordei. O Fome Zero como estava concebido tinha um alcance emancipatório. A família que entrasse no Fome Zero estaria autônoma, sem depender de recursos do governo federal. O Bolsa Família é muito bom mas é compensatório, não é emancipatório. Portanto a família que entra não pode sair. Se sair, corre o risco de voltar para a extrema pobreza.
Aliás, caso algum leitor ou ouvinte esteja interessado em conhecer os detalhes disso, está tudo descrito no meu livro Calendário do poder. Um diário do meu trabalho quando assessor especial do presidente Lula para o Fome Zero. Um livro da editora Rocco. E também no meu site, onde podem obter o livro até mesmo mais barato.
Pois bem. Essas políticas de segurança alimentar adotadas no Bolsa Família, um programa que eu aplaudo devido à importância que ele tem.. Mais de 50 milhões de famílias beneficiadas. Mas o governo Bolsonaro não tem interesse em ampliá-lo. Hoje existe uma fila imensa de pessoas, quase 1 milhão, esperando a adesão.
E agora isso vai aumentar. O desemprego oficial já era, no início da pandemia, de 12 milhões de pessoas. Agora, com o início da pandemia, esse número chega a 28 milhões de pessoas. Imagina 28 milhões de pessoas em uma população com 100 milhões de trabalhadores economicamente ativos. Somos 200 milhões de habitantes e todos somos sustentados por esses 100 milhões que trabalham. 
É muito grave o que vem acontecendo porque a pandemia aumentou o desemprego e aumentou a insegurança trabalhista. As questões trabalhistas já vinham sendo sucateadas desde a reforma trabalhista.
Uma série de medidas foram adotadas para colocar no chão todas as conquistas da classe trabalhadora que estavam consolidadas na CLT. Isso tudo foi desarticulado com as reformas trabalhistas e previdenciárias. E hoje temos uma suberização do trabalho. Cada vez mais o empregado é praticamente um escravo, realmente não tem garantias. 
E ele tem que trabalhar muito e excessivamente para conseguir assegurar o mínimo de sobrevivência. Por isso é muito importante essa reação dos entregadores de encomendas, os motoboys entregadores têm feito ultimamente.  
Brasil de Fato - Em meio à pandemia, a discussão colocada pelo governo criou uma polarização entre a economia e saúde. E estamos assistindo reaberturas consideradas precipitadas por médicos e especialistas da área da saúde? Como o senhor avalia essa postura e esse processo de resposta à pandemia?

Frei BettoÉ um dilema totalmente falso. Primeiro porque a economia não é concebida no Brasil em função da maioria da população. É concebida em função dos detentores do capital. Em função da elite, daqueles que têm acesso à aplicações financeiras na Bolsa de Valores.
Então, na verdade, a proposta genocida do governo é "vamos deixar que morram os brasileiros, sobretudo os mais vulneráveis, os pobres, os idosos, os que têm doenças pré-existentes, porque isso irá trazer uma economia de recursos". Explico: Se não se toma nenhuma providência para deter a pandemia, que foi a opção do Bolsonaro, você tem maior mortandade entre os oneráveis.

Não existe dilema. Na verdade é isso: 'Que se danem as pessoas de classe C, D e E no Brasil'

Primeiros os idosos. Ora, morrer muitos idosos representa uma grande economia pro INSS. Segundo, os que têm doença pré-existente. Se morrerem esses, é uma grande economia para o SUS. E terceiro, morrendo os mais pobres, uma grande economia para o Bolsa Família e outras medidas de proteção social.
É esse o panorama. Não existe dilema. Na verdade é isso:  "Que se danem as pessoas de classe C, D e E no Brasil" e salvemos as classes A e B". A classe alta e a média alta. Isso que importa ao governo.
 Brasil de Fato - Como o Estado brasileiro deveria estar agindo nesse momento? Qual o papel do Estado em meio à crises como essa?

Frei BettoO que o Estado deveria fazer, nesse governo, seja com Bolsonaro ou com Mourão, não tem nenhuma perspectiva. A pergunta que temos que fazer é o que o povo brasileiro deve fazer. O que os movimentos sociais, as instituições democráticas e os partidos progressistas devem fazer. Temos que agir cada vez mais. É uma atrocidade o que vem acontecendo em nosso país.
É preciso pressionar cada vez mais o Congresso para tomar medidas contrárias a essas que o Bolsonaro tem assinado medidas provisórias que ele propõe. E no momento que a pandemia cessar, vamos para rua. Não tem outro jeito. Vamos ocupar as ruas como já tinha começado no início da pandemia, para manifestar a nossa insatisfação e tentar mudar esse quadro político. Não dá pra pensar na possibilidade de conviver mais dois anos e meio com um governo genocida. 
Um governo geocida porque a questão do desmatamento da Amazônia, da desproteção ambiental, de deixar passar a boiada, favorecer as mineradoras do garimpo ilegal, permitir invasão das áreas indígenas. Tudo isso é uma desgraça absoluta sobre o Brasil, uma desgraça absoluta sobre o Brasil. E só há uma possibilidade de deter esse processo, que é a mobilização popular. 
 Brasil de Fato - A Oxfam divulgou um estudo recentemente, apontando que o Brasil está entre os prováveis epicentros da fome no mundo em meio à pandemia. Nesse sentido, gostaria de te perguntar sobre a situação das políticas de soberania alimentar e nutricional, principalmente no campo. 

Frei Betto - Na verdade, as boas políticas que existem são feitas pelos movimentos populares, como o MST. Nos seus acampamentos e assentamentos, o MST tem implementando medidas que são mundialmente exemplares e que tem dado muito resultado. Agora, da parte do governo não há nada. O governo acabou com o Consea, desarticulou todos os mecanismos que deveriam assegurar a seguridade alimentar e levaram o Brasil a sair do Mapa da Fome. Nós corremos o risco de voltar. 
Vem aumentando o número de pessoas em situação de risco grave de desnutrição. Até porque, com a pandemia, há um aumento no preço dos alimentos. Em decorrência da falta de transporte, a questão do isolamento social, em decorrência do desemprego muito grande principalmente nas áreas de transporte, serviços, agricultura e etc.
Por exemplo, no interior de São Paulo tem muitas colheitas que sazonalmente atraem trabalhadores de outras regiões do país. Isso agora se tornou mais difícil. Outro dia mesmo vi uma cena terrível. Em Santa Catarina, jogando em um foço, milhares e milhares de frutas, porque não havia como escoá-las. Um pouco aquela política de ao invés de distribuir, joga-se no lixo para que o preço do produto não caia. 
Então é muito difícil que o Brasil continue fora do Mapa da Fome. Nós estamos em uma situação séria. A única solução hoje, como tem sido adotada agora na pandemia, é a mobilização social. Vejo aqui nas favelas de São Paulo, principalmente a Central de Movimentos Populares tem feito um excelente trabalho de coletas de recursos para compra e distribuição de cestas básicas. 
Isso tem que ser intensificado, é muito importante porque, como dizia Betinho, a fome tem pressa. São muitas famílias desamparadas, principalmente as que são chefiadas por mulheres. Sabemos que 40% da força de trabalho brasileira está na informalidade, são trabalhadores informais. E a maioria são mulheres que não têm o mesmo salário que os homens, e ao mesmo tempo, elas têm uma dupla jornada de trabalho. O trabalho fora de casa e o trabalho dentro de casa. Cuidar da casa e das crianças, dos filhos.

"É muito difícil que o Brasil continue fora do Mapa da Fome"

Um governo minimamente decente, minimamente justo, deveria se preocupar com esses seguimentos vulneráveis e garantir como outros países têm feito, não só a segurança alimentar mais uma renda básica.
Eu creio que a ideia do Suplicy, da renda básica universal, é cada vez mais premente. É preciso que governos do mundo inteiro adotem para toda a população, independentemente de etnia, de sexo, de idade, uma renda básica mínima. O resultado está provado nos poucos países que fizeram isso, o resultado é altamente positivo. 
Ninguém vai morar na rua, ninguém vai para a criminalidade, por vontade própria. Por isso que eu digo: Não existem pessoas pobres, existem pessoas empobrecidas. Ninguém quer viver na pobreza. As pessoas que estão nessa situação foram estruturalmente levadas a ela. E fazem tudo para tentar sair. Seja pelo esforço do trabalho, pela sorte na loteria, pelo milagre na igreja da esquina, seja pela criminalidade.
Ninguém se conforma em viver privado de bem essenciais, principalmente os três básicos na garantia de direitos humanos. Pela ordem são: alimentação, saúde e educação.  
Brasil de Fato - O senhor falou sobre a questão do desperdício da comida, do aumento do preço. Quais ações emergenciais para os pequenos agricultores poderiam ser tomadas nesse momento, tendo em vista a importância dessa produção?

Frei Betto - Os pequenos agricultores garantem 70% dos alimentos que chegam à nossa mesa. As grandes empresas produzem para a exportação, não para o mercado interno. A mesa do brasileiro é 70% assegurada pela agricultura familiar. 
Nos governos do PT, várias medidas altamente positivas foram adotadas para incentivar a agricultura familiar, para dar a ela segurança mesmo em períodos de entressafras. O que também foi feito com os pescadores. Não é o ano inteiro que eles podem buscar o peixe no mar, então o governo assegurou um complemento de recurso pelos quais eles tinham a renda garantida. Isso tudo tem sido desmontado, anulado, negado. 

"A mesa do brasileiro é 70% assegurada pela agricultura familiar"

Creio que aí está a pressão importante também do povo do campo com apoio da cidade.  Não existe isso da luta ser só de um. A luta dele deve ser a de todos nós. Há um avanço criminoso do latifúndio, do agronegócio e das mineradoras também sobre a agricultura familiar. Aconteceu algo que é uma tragédia que faz esse setor pensar.
Por exemplo, os frigoríficos. O Brasil é um grande exportador de carne. Muitos frigoríficos estão paralisados, seja porque a maioria dos trabalhadores pegaram a covid-19, ou devido aos importadores, como aconteceu com a China, suspenderam a importação.
A China suspendeu a importação de carne de 3 grandes frigoríficos no Brasil porque a carne que chegou lá estava também contaminada. Isso vai obrigar esses exportadores a repensarem as condições de trabalho. Não dá para enganar quem exige qualidade e muitos importadores estão interessados na qualidade. E agora, mais do que isso, estão pressionando o governo para a questão do fim do desmatamento e da preservação ambiental.
O governo está em uma sinuca. Não é política dele fazer preservação ambiental. Se tivesse o mínimo de honestidade quando fala de preservação ambiental, a primeira medida que deveria ser tomada é demitir o atual ministro do meio ambiente, o Salles. O do "passar a boiada". Mas enquanto o Salles estiver a frente do Ministério do Meio Ambiente, fica óbvio, que o governo não pretende mudar sua política de devastação ambiental.   

Brasil de Fato - Os dados apontam que também haverá o aumento da fome em outros países. Qual o contexto global? Qual lógica está por trás desse processo, que permite que cheguemos a esse ponto tão extremo?

Frei Betto - Em 2019, mais de 10 milhões de pessoas ingressaram em situação de fome no mundo. Hoje são 690 milhões de famintos em todo planeta. Isso representa 8,9% da população mundial. Com a pandemia, esse número pode ser acrescido de mais de 270 milhões até o fim desse ano. Nos últimos cinco anos, o aumento de famintos é de quase 60 milhões de pessoas. 
A desnutrição tem aumentado pelo quarto ano seguido e hoje um a cada dez habitantes do planeta sobrevivem em insegurança alimentar. A FAO, órgão da ONU para qual eu trabalho, está prevendo que o coronavírus acrescente 132 milhões de pessoas ao número total de indivíduos subnutridos apenas esse ano, em consequência dos impactos provocados pela covid-19.
Hoje temos mais de 7 bilhões de habitantes dos quais 2 bilhões não têm acesso regular a alimentos nutritivos, de qualidade e quantidade suficiente. Cerca de 3 bilhões de habitantes, quase a metade da população global, não tem meios para manter uma dieta considerada minimamente equilibrada. Como por exemplo, ingerir quantidade suficiente de frutas e legumes.
Em média, uma dieta saudável custa cinco vezes mais do que uma dieta que só atinge as necessidades de energia com alimentos ricos em amido. Eles até engordam, mas não nutrem. 
Nós temos muito amido como mandioca, que as pessoas repetem diariamente na alimentação porque não tem alternativa. Mas isso não tem as vitaminas, os nutrientes essenciais para uma saúde boa e uma dieta saudável.
A obesidade vem aumentando, tanto em adultos quanto em crianças. E muitas vezes por causa da fome [da ausência de alimentação de qualidade]. Uma alimentação saudável é inalcançável para 38% da população mundial, essas quase 3 bilhões de pessoas. Dessas, 104 milhões vivem na América Latina e no Caribe.
Quem mais sofre com a ausência de alimentação saudável são as crianças. Ano passado, 144 milhões de crianças abaixo de cinco anos foram atingidas pelo crescimento atrofiado. Enquanto outras 38 milhões estavam com excesso de peso.
A questão já era grave antes da pandemia, se agrava agora e realmente precisamos colocar isso às claras. Denunciar, propagar e pressionar o governo. Nos mobilizar para mudar essas políticas governamentais.
Brasil de Fato - O senhor tem viajado para outros países enquanto assessor da FAO. Existem exemplos de combate à fome que poderiam ser seguidos?

Frei BettoEm quase todos os países existem experiências setoriais e locais muito interessantes. Mas tenho acompanhado mais de perto a experiência cubana. Cuba é um país sui generis. Primeiro que é o único país socialista da história do Ocidente. Segundo, é o único país socialista da América e do Caribe. E terceiro é uma ilha, não só no sentido geográfico, mas também uma ilha econômica. Cortada, bloqueada e agredida permanentemente há mais de 60 anos pelo governo dos Estados Unidos.
Ali, toda a população, mais de 11 milhões de habitantes, tem seus direitos básicos totalmente assegurados. Alimentação, saúde e educação. Nenhum cubano passa fome.  
Há um cartaz em Cuba que é muito emocionante. Quando você chega no aeroporto de Havana tem um outdoor com a foto de uma criança cubana sorrindo. E escrito o seguinte: essa noite, 200 milhões de crianças dormirão nas ruas do mundo. Nenhuma delas é cubana. E é verdade. 
Em Cuba não existe isso. O governo toma providências, há tempos, de aprimorar a segurança alimentar. E agora tenho feito justamente um trabalho junto ao governo. Primeiro teve uma crise com a Queda do Mundo de Berlim.  Cuba contava, na questão alimentar, com muita ajuda dos países da União Soviética. Depois Cuba contava com muita ajuda dos governos de esquerda da América Latina. Governos Lula e Dilma favoreceram muito a questão alimentar em Cuba.
O Brasil é um dos maiores produtores mundiais de alimentos e Cuba tem muita dificuldade. É um país que carece de recursos para ter a multiplicidade de alimentos que temos no Brasil. Para se ter uma ideia, em Cuba não tem sequer condições, como se tem aqui, de produzir energia elétrica. Não tem grandes rios, não tem cachoeiras. A energia elétrica é mantida a base do petróleo importado, uma importação cara.
Apesar disso, há uma cesta básica garantida mensalmente para cada uma das famílias cubanas. Depois que os países da América Latina começaram a perder governos progressistas, quem ajudava muito Cuba era a Venezuela. Mas com a crise com a Venezuela, cessou. 
E aí entra esse programa que nós da FAO estamos desenvolvendo para fortalecer a soberania alimentar e a educação nutricional em Cuba. São muitas medidas, é muito interessante, mas isso é um assunto pra outra conversa. 
Brasil de Fato - Até mesmo a partir da sua atuação na ONU, como o Brasil está sendo visto lá fora? Qual a imagem do nosso país neste momento?

Frei BettoAs pessoas adoram os brasileiros e brasileiros, a natureza, os que nunca vieram dizem que querem vir conhecer a Amazônia, o Pantanal, as praias. Agora, um horror ao governo. E a pergunta: "Como foi possível o povo brasileiro escolher um Bolsonero? O que aconteceu que de repente, depois de 21 anos de ditadura militar que vocês sofreram como se explica isso?".
E realmente daí o meu livro O diabo na corte. É uma tentativa de ajudar na análise desse fenômeno negativo na história do nosso país. Fica minha dica para os ouvintes e leitores. "O Diabo na corte" pode ser adquirido mais barato através do meu site.

"Como foi possível o povo brasileiro escolher um Bolsonero?"

Brasil de Fato - O senhor mencionou que é muito improvável que o Brasil se mantenha fora do Mapa da Fome. Estamos de mãos atadas? O que fazer para reverter o quadro?

Frei BettoEstamos de mãos atadas pela dificuldade que a pandemia nos impõe de mobilização nas ruas. Mas temos que pressionar o Congresso, a mídia, fazer o que tiver ao alcance de cada um de nós. Agora depende do governo, não temos como improvisarmos. Claro que há iniciativas muito positivas como a do MST, nos assentamentos, mas elas são pontuais. Precisamos de medida de alcance nacional e isso tem que ser feito via governos, não tem outra maneira. 
Brasil de Fato - Estamos vendo um cenário cada vez mais graves em países que adotam o modelo neoliberal, mas em meio à pandemia houve orientações de entidades como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, que falaram sobre a importância de ajudar a população e da não realização de ajuste fiscal. O senhor acha que a pandemia mudou algum consenso?

Frei BettoEu não confio nesse discurso. Acho que é um discurso demagógico que não chega a prática. Eles querem mesmo, cada vez mais, manter a economia dos nossos países asfixiada. O FMI está em pânico com a possibilidade do Fernandez, na Argentina, declarar moratória. 
Há alguns governos percebendo que é importante aumentar as medidas de amparo social, de políticas sociais para os pobres e vulneráveis, até porque existe um detalhe nesse aspecto: assim como o vírus não faz distinção de classe, mas atinge majoritariamente o mais pobres, quanto maior a pobreza mais a possibilidade de novos vírus aparecerem. Agora a questão da miséria e da pobreza, além de ser uma questão social, econômica e política, se tornou uma questão sanitária. Isso realmente exige uma reflexão profunda de vários setores da sociedade. 
Inclusive de alguns setores das altas finanças. Pode ser que dentro do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial haja diretores conscientes disso. Mas duvido muito que a instituição como tal vá mudar sua diretriz de defesa intransigente do capital privado e não dos direitos coletivos. 
Brasil de Fato - Qual a perspectiva para a população brasileira nos próximos anos sob o governo Bolsonaro?

Frei BettoAcho que primeiro temos a perspectiva dos próximos meses, que é votar bem nas eleições municipais. Votar em candidatos progressistas, éticos, comprometidos com os movimentos sociais, com os setores mais vulneráveis, com as minorias. Isso é muito importante que comecemos a nos mobilizar desde agora para mudar o perfil dos municípios. Votar em prefeitos realmente identificados com as demandas populares. 
Avaliando as grandes necessidades, como os candidatos reagiram diante da pandemia. E, ao mesmo tempo, começar a preparar as forças políticas para evitar que o Bolsonaro seja reeleito ou aquele que o suceder, caso ele não chegue ao fim do mandato.
Ou seja: mudar totalmente esse governo militarizado que só veio agravar mais a situação dos direitos humanos e dos direitos em geral, trabalhistas e previdenciários, do povo brasileiro.








Edição: Rodrigo Durão Coelho
Brasil de Fato | São Paulo (SP) 15 de Julho de 2020