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terça-feira, 26 de maio de 2015

OS JOVENS NEGROS DE FERGUSON E BALTIMORE NÃO VÃO DEIXAR A SUA HISTÓRIA SER IGNORADA

Militante do movimento negro dos Estados Unidos, Biko Barker discute o racismo na sociedade norte-americana, evidenciado pela violência policial em Ferguson e Baltimore.
Por José Coutinho e Simone Freire

Freddie Gray, jovem negro de 25 anos residente em Baltimore, no distrito de Maryland (EUA), foi preso no dia 12 de abril após tentativa de fuga. Apesar de portar apenas um canivete, Gray foi colocado num camburão e misteriosamente sofreu uma grave lesão na espinha, que resultou em seu óbito uma semana depois.
Michal Brown, jovem negro de 18 anos, residente em Ferguson, estava a caminho da casa de sua avó no dia 09 de agosto de 2014. Foi abordado por policiais e, de mãos levantadas, foi baleado.
Os assassinatos de Gray e Brown deixaram claro à sociedade estadunidense que, apesar da abolição da escravidão em 1863 e o fim da segregação racial na década de 1960, o racismo continua enraizado no país. Essas mortes, no entanto, foram o estopim para grandes manifestações da comunidade negra contra o racismo, o preconceito, e exigindo que a justiça fosse feita.
“O racismo institucional não é efetivo porque uma pessoa aqui ou ali é racista; ele funciona porque as pessoas, às vezes sem saber, propagam práticas e políticas preconceituosas que estão enraizadas na sociedade, e que acabam enfraquecendo, desvalorizando e as vezes matam pessoas negras”, analisa Biko Baker, doutor em Tecnologia e diretor executivo da organização League  of Young Voters Education Fund (Fundo de Educação da Liga de Jovens Eleitores - tradução livre). 
Em entrevista concedida ao Brasil de Fato, Biko discute o racismo na sociedade estadunidense, evidenciado pela violência policial em Ferguson e Baltimore, e como o racismo nos EUA se assemelha ao brasileiro.
Biko Baker, militante do movimeno negro nos EUA
Abaixo, confira a entrevista:
Brasil de Fato - O racismo e preconceito nos EUA são ensinados em casa? Onde mais podemos identificar que o racismo é propagado na sociedade norte-americana? 
Biko Baker - Eu acredito que o racismo é ensinado em casa, num nível individual. Mas nunca podemos esquecer que o racismo é perigoso porque tem um impacto em instituições, como escolas, cortes de justiça, até mesmo em bancos, negros têm mais dificuldades para obter empréstimos e começar um negócio.
Também há discriminação no espaço de trabalho, que previne pessoas negras qualificadas de conseguir empregos.
O racismo institucional não é efetivo porque uma pessoa aqui ou ali é racista; ele funciona porque as pessoas, às vezes sem saber, propagam práticas e políticas preconceituosas que estão enraizadas na sociedade, e que acabam enfraquecendo, desvalorizando e às vezes matam pessoas negras.
Brasil de Fato - Qual a relação dos negros com as instituições de Estado e governos?
Biko Baker - Os negros têm muito poder político nos EUA. Barack Obama não teria sido eleito presidente se não fosse a força do nosso voto. Pessoas negras têm poder em um nível local, especialmente em cidades como Atlanta e Filadélfia, com prefeitos negros. O problema é que o sistema em que vivemos tem um histórico de discriminação e más políticas internas, que propagam a discriminação.
Os EUA acabaram com o racismo explícito com o fim das leis Jim Crow (que legalizavam a segregação racial no país) nas décadas de 1950 e 1960, mas estabeleceram o racismo institucional quando estabeleceu, nas décadas de 1970 e 1980, a guerra contra as drogas.
Então, mesmo que pessoas negras tenham força política, cidades que são governadas por elas são igualmente opressoras para a população negra. E isso se dá porque esses governos locais continuam avançando as políticas fundadas na guerra contra as drogas.
Brasil de Fato - Que políticas de guerra contra as drogas institucionalizaram o racismo?
Biko Baker - Mesmo pessoas negras e brancas consumindo a mesma quantidade de drogas no mesmo nível, a guerra contra as drogas tem os maiores e mais danosos impactos nas comunidades de cor.
Há um superpoliciamento nas comunidades negras, e a justiça historicamente tratou as drogas usadas em comunidades pobres, como o crack, que é mais acessível que a cocaína, com penalidades mais duras.
A disparidade das sentenças em certo ponto foi de 100 usuários de crack presos para cada usuário de cocaína. Mesmo com o Ato de Sentença Justas de 2010 fazendo a proporção mais igualitária, a diferença ainda é de 18 para 1.

No fim das contas, se você é negro e pobre, você tem mais chances de ser pego, preso e julgado por usar drogas, porque a polícia tem mais chances de estar na sua comunidade procurando de uma forma doentia por traficantes e usuários.
Brasil de Fato - Como você avalia o que aconteceu em Ferguson, em termos da brutalidade policial e também como a população lidou com isso nos protestos?
Biko Baker - Os jovens negros não têm medo. Eles também são muito conscientes politicamente. Os jovens militantes de Ferguson disseram que já bastava e se mantiveram contra a polícia, não parando de se manifestar desde 9 de agosto de 2014.


Em minha opinião, St. Louis, Fergunson, ainda lutam contra os fantasmas da escravidão. Missouri foi uma das últimas cidades a abolir a escravidão, e eu acredito que é por causa disso que há uma propensão para ignorar o racismo.
Mas os jovens negros não vão deixar a sua história ser ignorada. Então eles tomaram as ruas, todos os dias por nove meses. A mídia tradicional tenta focar nos incêndios e saques, mas, na maior parte, o que eu vi foram jovens respondendo à dor e violência com arte, amor, fazendo com que suas vozes fossem ouvidas.
Denunciar sua situação de opressão é o primeiro passo para elevar a consciência, e acredito que Ferguson mostrou que estamos começando a ver a força política dos jovens.
Brasil de Fato - Qual foi o papel do hip hop e das redes sociais para mostrar o que ocorria em Ferguson? Como a mídia tradicional tratou os protestos?
Biko Baker - O mundo não estaria falando de Ferguson ou Baltimore se não fosse pela força da arte e as redes sociais. Conectados por plataformas como WhatsApp, Facebook e Twitter, os jovens dos EUA estão compartilhando e aprendendo das experiências de cada um.
Não é sem motivo que as vozes mais ouvidas nas lutas são de rappers e artistas; eles são as vozes mais críveis e experientes dentro das comunidades negras.
A grande mídia adoraria virar a história e tratá-las pelo seu viés conservador, mas ela não pôde ignorar a indignação dos negros nos EUA. A voz deles era muito forte, e eles estavam muito conectados.
Brasil de Fato - Depois de Ferguson, temos Baltimore. O que conecta a violência nas duas cidades? Você acha que os protestos vão mudar a forma como os negros são tratados nos EUA?
Biko Baker - De tudo que sei do que ocorreu em Baltimore, a situação é similar a Ferguson. Baltimore é uma cidade do sul do país que ainda tem de lidar com os problemas raciais.
Pobreza e racismo não podem ser colocados debaixo do tapete e esquecidos. Uma hora, como ocorreu, isso sempre vai aflorar.
Brasil de Fato - No Brasil, com a eleição de Dilma Rousseff, pela primeira vez, muitas expectativas foram criadas em relação às lutas de igualdade de gênero. Expectativas que não se tornaram realidade. Nos EUA, com a eleição de Obama, houve a mesma expectativa em relação à questão racial?
Biko Baker - O movimento negro nunca teve grandes expectativas de que Obama realizasse milagres. Mas também não pensamos que muitos brancos fossem tão relutantes à mudança na presidência.
No entanto, esperávamos que pelo menos houvesse um novo caminho aberto para pessoas de cor e pobres. Foi isso que ele nos prometeu durante sua primeira campanha. E mesmo assim vivemos em período tão carregado pelo preconceito racial como em 1968.
Os apoiadores de Obama apontam que nosso Legislativo dividido é a fonte dos problemas, mas acredito que nosso presidente deve ser criticado por não antecipar o nível ao quais seus oponentes se rebaixariam, usando velhos estereótipos racistas para atacá-lo.
No fim das contas, estamos debatendo o racismo e o assassinato de pessoas negras, ao invés de discutir formas de trabalhar juntos e fazer com que pessoas pobres possam ter melhores condições de vida. Talvez Obama tenha sido ingênuo e não entendeu a força da elite política dos EUA para manter o status quo.
O que eu sei é que os negros não estão melhores economicamente do que estavam antes dele entrar na Casa Branca, e seu legado será manchado por isso.
Brasil de Fato - A maioria das mortes de negros no Brasil nas periferias são registradas pela polícia como “autos de resistência”. Esse termo jurídico é questionado por movimentos sociais, porque protege o policial e culpa quem morreu sem qualquer investigação. Nos EUA, o termo usado é “homicídio justificado”. A situação nos EUA de proteger a polícia ao matar negros é similar ao Brasil?
Biko Baker - Antes dos celulares com câmeras, a polícia usava o “homicídio justificado” como desculpa para seus abusos. Agora, com tantas dessas tragédias sendo flagradas e registradas, ficou claro para a sociedade que a polícia nem sempre conta a verdade.
Enquanto muitos advogam colocar câmeras nos uniformes dos policiais e dizem que isso vai resolver o problema, o movimento negro acredita que o sistema inteiro em que vivemos construídos na criminalização e militarização de comunidades pobres, é o problema. Muitas pessoas e instituições se beneficiam economicamente desse sistema, como departamentos de polícia locais, que recebem enormes quantias de dinheiro do governo. A menos que consigamos que o Estado valorize nossas vidas, a polícia sempre vai sair impune ao assassinar negros.
Brasil de Fato - Também no Brasil, o Congresso quer passar um projeto de lei que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos. O EUA adotou medida similar, mas vários estados já discutem aumentar a idade penal, por perceber que a medida não reduz a violência. Como você analisa a intenção de reduzir a maioridade?
Biko Baker - Os EUA prenderam aproximadamente 1 milhão e 300 mil jovens com menos de 18 anos em 2012. Só 61 mil dessas prisões foram relacionados à crimes violentos. Isso significa que prendemos uma maioria por crimes não violentos. Isso não é um pouco extremo?
É claro que o sistema de justiça juvenil é um grande negócio para governos locais que precisam dar empregos à classe trabalhadora que foi demitida pela economia em crise.
Os EUA construíram um modelo econômico inteiro baseado em punir crimes não violentos, quando isso deveria ser tratado nas comunidades locais e famílias.
No fim das contas, se tornou legal mirar nos jovens, porque torna mais fácil justificar a criminalização contínua das comunidades pobres negras. Se o medo for criado e as pessoas acreditarem que a juventude quer assassiná-las, é mais fácil justificar esse modelo quebrado de sociedade em que vivemos.



Fonte:.brasildefato.com.br

13/05/2015