Eduardo
Sales da Reportagem
No bar do Zé Batidão não faltou cerveja; nem
poesia. Por entre as mesas daquela quarta-feira à noite (30 de janeiro) o
silêncio também era uma prece. Mas só para deixar que Zumbi ou Nossa Senhora
pudessem se transfigurar a partir do microfone.
Poderia ser dito,“se pá”, que
aconteceu até declaração de amizade em forma de poesia. Entre as declamações
como não se comover com a voz possante e pulsante de Dona Edite, uma das
estrelas da noite?
Passada uma hora e meia de poesia, um dos maestros da noite,
que quando criança passava o dia todo lendo no bazar do pai, pausa a venda de
camisas do sarau para “trocar uma ideia” com o Brasil de Fato.
Cem anos de solidão o “chamou” para viver como
poesia. Uma vez disse que, quando criança, não sabia que era pobre porque todos
ao seu redor eram iguais: “Só quando visitei o Bexiga [bairro central de São
Paulo], com seus prédios, compreendi melhor as coisas”. Para ele,“viver dói,
por isso o sonho”. E agora, Sérgio Vaz? O que vai nos dizer na esquina do bar
do Zé Batidão?
Brasil de Fato – Estou aqui em Piraporinha, zona
sul de São Paulo, no Sarau da Cooperifa, quase que me sentindo numa igreja, mas
no bom sentido da palavra. Você iniciou o sarau reforçando a necessidade do
silêncio para que a poesia fosse escutada.
Sérgio Vaz – Comungando a palavra, né..
.
Brasil de Fato – Já são doze anos de Cooperifa.
Sérgio Vaz – Eu acho que esse silêncio faz parte desses doze
anos, como uma conquista da comunidade. Depois de adorar o deus chamado
trabalho, as pessoas vêm aqui para comungar a palavra, a amizade. É isso que a
periferia está vivendo, tem a violência mas existe a cultura também.
Brasil de Fato – No final do ano passado, num
encontro literário no Sesc Belenzinho, você mencionou algumas influências como
Clarice Lispector e Gabriel Gárcia Marques.
Sérgio Vaz – Minha influência é Clarice Lispector; escritores
latinos que tinham uma pegada política, para chegar onde eu cheguei. Eu sempre
gostei de ler. Para chegar nessa literatura que eu faço hoje eu tive que beber
nessa fonte, essa a grande fonte. Eu acho que surgem poetas novos, jovens, que
a gente tem que ler, mas os clássicos são os clássicos. São imprescindíveis.
Brasil de Fato – Você cresceu em meio a leitura?
Sérgio Vaz – Quem me influenciou foi meu pai. Na minha casa
nunca faltou alimentos, nem livros. A gente sempre teve uma vida simples.
Brasil de Fato – Você tem elogiado bastante o livro
Um defeito de cor, que conta a história do ponto de vista periférico.
Sérgio Vaz – Esse é um livro da Ana Maria Gonçalves. Ela
investiga alguns escritos da época da escravidão, das pessoas que sentiram na
pele aquele período. Ela descreve o que era um país colonial, a Bahia, Minas
Gerais, o que era o Rio de Janeiro. É fundamental pra gente conhecer a nossa
história da periferia, onde estão os negros e os pobres. Fala de luta. Fala de
um monte de coisas que a gente precisa ouvir, mas escritas por aqueles que
sofreram. Na verdade, não é o caçador que está contando, é a caça.
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O escritor e poeta Sérgio Vaz comemora doze anos de Cooperifa.
Foto: Marcelo Min/Governo da Bahia
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Brasil de Fato – Como você vê a mobilização
política da periferia? Num sentido mais amplo, este sarau parece mostrar isso?
Sérgio Vaz – Ainda falta, mas as pessoas já estão se assanhando.
Você vê que hoje, um bar, que antes só servia para embriagar, serve para reunir
pessoas em torno da poesia. A gente não depende da prefeitura, não depende do
Estado pra ter um espaço. A gente transformou o bar.
As pessoas precisam se conscientizar para que a
gente não fique só reclamando. Tem que agir também. Reclamar como sempre e agir
como nunca. As pessoas estão começando a se tocar que precisam trabalhar com
que a gente tem. Continuar reclamando, mas fazendo. Se é uma praça, vamos para
a praça; se é bar, vamos para o bar; se é igreja, vamos para a igreja. E eu
acho que isso já está acontecendo. As pessoas estão usando o espaço que têm.
Surgindo do povo para o povo. Não vindo de fora para dentro, mas de dentro pra
fora. A Cooperifa é um movimento que não é meu, é da comunidade. Aqui se pode
ler qualquer poesia. Isso era impensável há dez anos atrás.
Brasil de Fato – E, nesse sentido, uma participação
maior do poder público seria positivo?
Sérgio Vaz – A função do governo, do Estado, é fomentar cultura.
É obrigação do caras. Agora, cabe a ele entender que tipo de patrocínio deve
conceder. Uma coisa é o Estado, outra é o governo. O Estado tem que fomentar
cultura, e a gente tem que ir atrás porque é dinheiro nosso. Mas a Cooperifa
não tem patrocínio, não tem nada. Ela se movimenta vendendo camiseta.
Brasil de Fato – Como podemos conceitualizar essa
literatura que você e outros tantos, como Sacolinha, Alexandre Buzzo, Ferréz, e
outros tantos fazem, e que a mídia corporativa não acompanha? É marginal? É
alternativa?
Sérgio Vaz – Todas as nomenclaturas são boas. Suburbana,
alternativa, marginal, divergente. Mas eu gosto de literatura periférica,
porque nos pertence. Assim como a literatura grega é feita pelos gregos, a
literatura negra é feita pelos negros, a literatura periférica é feita pela
periferia.
Brasil de Fato – Como você analisa o mercado
editorial para os escritores periféricos?
Sérgio Vaz – A grande dificuldade é a distribuição. Mas uma
coisa que a gente tem em comum é que a gente é marreteiro, né cara. A gente
vende em escola, em porta de teatro. A gente vai pra cima. Não muda muita coisa.
A gente não fica esperando a livraria Saraiva ou a Livraria Cultura. Os livros
estão lá, mas a gente vai atrás do leitor. O Sarau da Cooperifa forma leitor,
não forma escritor.
Brasil de Fato – Qual é a importância disso?
Sérgio Vaz – A formação do leitor é super importante porque o cara
que lê se torna uma cidadão, e um cidadão muda o seu bairro. É disso que a
gente precisa. O cara, quando lê, sabe para onde o ônibus vai, onde para; sabe
em quem votar, sabe assinar o cheque. A gente começa a querer fazer coisas que
nós queremos, e não o que os outros querem. Porque as pessoas que governam este
país leem e leem muito. Então a gente tem que ler também para não sermos
dominados.
Brasil de Fato – Como você vê o Hip Hop e os saraus
da cidade? Que influência um tem sobre o outro?
Sérgio Vaz – A gente deve muito ao Hip Hop, que surgiu na
periferia. O sarau complementou isso. A gente é convidado para ir ao show de
rap e convida os caras para vir aqui. Então, isso é uma grande harmonia, porque
todos somos da periferia. E a gente tem gratidão pelo rap que foi o primeiro
que deu o grito da periferia. Na verdade, a gente está junto e misturado.
Brasil de Fato – Ao mesmo tempo, o funk também se
espalha pela periferia paulistana. Longe de qualquer julgamento moralista, te
questiono acerca desse fenômeno.
Sérgio Vaz – O que é o funk? O funk é o retrato da juventude da
periferia. Se você quiser entender a periferia atualmente, você precisa ouvir o
funk. Esse funk reflete a educação pública de má qualidade, a falta de
segurança, a falta de saúde. Esse é o resultado. As crianças e jovens que
tiveram e têm uma educação falida não podem escrever letras sobre Chico
Buarque. As pessoas não têm onde ficar, não têm onde ir, aí colocam o som no
carro e vão curtir. Agora, o que a sociedade tem que entender é que isso é o
reflexo da educação que os jovens estão recebendo.
Brasil de Fato – Você está otimista em relação à
ampliação do número de leitores dos escritores periféricos?
Sérgio Vaz – A nossa ideia é que as pessoas se apropriem da
poesia, se apropriem da literatura. A gente não quer dominar o mundo, o país, a
gente quer fazer poesia. Nossa ideia é mudar a comunidade. Se atingir outras
pessoas, ótimo. Mas nossa ideia é mudar isso aqui. Interferir em nossa
geografia, como diz o [poeta] Marcelino Freire.
“Revolucionário é todo aquele que quer mudar o
mundo e tem a coragem de começar por si mesmo”. Sérgio Vaz
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/12070
22/02/2013
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