Convicto
e obstinado, Zé Pinto enumera os obstáculos em exercer a atividade de cantor
popular.
Railton
Teixeira, de Maceió (AL)
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O cantor e compositor Zé Pinto, autor de várias cantorias da luta do campo Foto: Railton Oliveira |
A esquerda brasileira e seus referenciais
teóricos em crise, face às profundas mudanças de alguns paradigmas perdeu-se
dentro do seu “labirinto teórico” e, ao explorar a cultura popular, não lhe deu
o valor merecido. Pelo menos é o que garante o cantador popular Zé Pinto, autor
de várias cantorias da luta do campo, como ele mesmo prefere denominar.
Em sua passagem por Alagoas, ele ressaltou ao Brasil
ao Fato a falta de valorização da cultura popular por parte da esquerda e
dos dirigentes dos movimentos sociais que, segundo Zé Pinto, só fortaleceu o
“projetão de bestificação das pessoas”, ratificando ainda que “o importante é
vender; esse é o grande problema do projeto que está ligado à grande mídia”.
Brasil de Fato – Quase três décadas de muita
cantoria, animando e fazendo sua mensagem ser cantada por inúmeros militantes,
diga-se de passagem, uma delas gravada por Beth Carvalho. Mas muito pouco se
sabe sobre você. Afinal, quem é Zé Pinto?
Zé Pinto – Uai! [risos]. Sou um cantador popular, apaixonado
pela agroecologia, apaixonado pela luta da terra, radicalmente contra as
pessoas que se atrevem a cantar besteira para alienar as pessoas e todo esse
lixo cultural.
Brasil de Fato – Como foi que tudo começou?
Zé Pinto – Sou mineiro, mas minha família foi para o norte na
migração, lá nos anos 1970, quando chegamos a Rondônia, atrás de um pedaço de
terra. A cidadezinha do interior não existia, tinha ali umas casas do Incra [Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária], uns dois botecos e foi lá que
conheci o MST, em Ouro Preto do Oeste. Lá conheci o Partido dos Trabalhadores,
numa sala meio escondida na igreja. Eles vieram fundando os sindicatos e fui
convidado a participar de um curso do MST. Nisso eu me amarrei. Já fazia as
minhas cantigas ali quando perdia as namoradas e a música foi só se engajando,
isso lá por volta de 1986.
Brasil de Fato – Ao longo de sua trajetória, como é
se deparar com esse ‘lixo cultural’ que vem ganhando espaço por entre as
“massas” e principalmente nos veículos de comunicação?
Zé Pinto – O trem está tão difícil que até parece que
esquecemos que sempre existiu um embate entre a música que fala aquilo que está
ligado às raízes do povo brasileiro e sua caminhada com essa outra. É questão
de dois projetos mesmo, sempre teve isso, mas agora a coisa tá tão descarada
que está fazendo nojo.
Brasil de Fato – Dois projetos?
Zé Pinto – Se é pra ter lucro não existe a preocupação com o
avanço humano das pessoas, muito menos com o avanço cultural. Quanto mais o
povão ficar alienado, mais se consegue passar o seu produto, que é uma
mercadoria. Não havendo interesse de saber qual é o conteúdo desta mercadoria.
O importante é vender. Então esse é o grande problema do projeto que está
ligado à grande mídia comprometida com o lucro.
Brasil de Fato – Onde podemos localizar a cultura e
a arte popular neste emaranhado?
Zé Pinto – Como a história está um pouco fria é preciso
engolir este caroço. A coisa não está fácil, a música também começa a ficar meio
apagada. Existem muitos cantadores que só pelo fato de fazerem uma música
inteligente, uma música que retrata a realidade do seu povo já é um militante
de sua cultura, já está cumprindo um papel interessante. Mas essa luta está um
pouco abafada, até porque a luta do povo esta um pouco esquecida, o projetão
deles lá [indústria cultural], está conseguindo caminhar a passos largos, então
é meio complicado.
Brasil de Fato – É possível reverter essa situação?
O que está faltando?
Zé Pinto – Pense num desafio. Porque se a gente não tiver
cuidado vai na onda. A arte tem que cumprir esse papel, não pode ir na onda de
que agora nada mais acontece. Tem que achar um jeitinho de ir falando essa
verdade, porque a história não morreu, não chegamos ao final da história.
Brasil de Fato – Há espaços para os artistas
populares divulgarem os seus trabalhos e assim socializarem as suas verdades?
Zé Pinto – Não existe. Se é popular é no meio popular, não
tem outro espaço. Ainda temos um problema sério no Brasil dentro da própria
esquerda que não conseguiu realmente reconhecer o papel de um artista popular.
A arte no Brasil sempre foi muito utilizada, isso foi um erro histórico da
esquerda brasileira. Quando o dirigente perde o fio da meada, chama o cantador
para agitar [risos].
Outra coisa: quando se cria uma rádio comunitária,
que deveria ser ligada ao povo usam uma música que é contraditória ao projeto,
com artistas que só cantam pra comprar fazenda, pra comprar carros. São os
próprios dirigentes que alimentam essa ilusão de que eu preciso colocar um CD de
Zezé de Camargo e Luciano, porque são famosos e são o que a juventude quer.
Brasil de Fato – E esse embate com a esquerda?
Zé Pinto – A esquerda sempre utiliza a gente. Em período
eleitoral é mais visível isso. Vamos para a campanha, acreditando, e quando o
dito cujo se elege, mesmo sendo de esquerda, ele acha que tem que contratar o
cantor famoso e pensa ‘agora virei prefeito vou trazer esse cara para cá’. O
dinheiro que ele poderia fazer uma noite de cantoria com 20 cantadores ele dá
tudo pra uma duplinha dessas daí que abre a boca e só fala besteira. Diz que é
de esquerda e não tem essa compreensão.
Brasil de Fato – Qual a sua análise sobre a
esquerda atual?
Zé Pinto – Esquerda hoje é um negócio que a gente não está
conseguindo achar [risos]. Agora existem pessoas que ainda sonham e o trem pode
ficar na grossura de uma linha que não se arrebenta. A vantagem da história é
essa, você necessita comprar uma calça para vestir? Vai lá no cabo da enxada,
trabalha e compra, mas não vende a alma para o diabo. A pessoa que se vende é
uma mercadoria, há muitas pessoas que se vendem e são bem pagas.
Brasil de Fato – E o projeto de eleger um
presidente da república?
Zé Pinto – A questão deste pessoal que está na disputa
direta, dentro da política partidária, é que não sei se fingem não entender, ou
não entendem mesmo, que isso é uma disputa para administrar um Estado que não é
do povo, um Estado que é inimigo do povo. É uma ilusão achar que Lula ou Dilma
iria fazer algo, a não ser que radicalizem e soltem as mãos deste Estado
burguês e apertem a mão do povo. Aí é preciso ter bastante coragem para poder
largar as mordomias.
Brasil de Fato – Neste emaranhado, como sobrevive
um cantor popular, uma artista do povo?
Zé Pinto – Artista popular tem que ralar, não pode achar que
pode ficar vivendo de música. Muito difícil achar que um cantador, militante da
causa do povo vai viver de música, e também nem tem que ter essa pretensão,
não. Cantar porque cantar é um prazer, uma tarefa política de quem acredita nas
coisas, de quem tem valores, que acha que tem que ajudar o povo a cultivar.
Brasil de Fato – Os artistas populares são unidos e
convictos desta realidade pelo menos?
Zé Pinto – Artista é um bicho complicado e exigente. Tem um
cantador amigo meu que se for dar entrevista ele arruma tanta exigência, ‘sim,
mas vou ficar em pé aqui? Como é? Não dá pra gente sentar? Num dá pra fazer não
sei o quê?’ Para fazer um negócio de cinco minutos, faz aquela confusão, e eu
acho que isso é muito herança dessa ilusão que tem em cima dos artistas, esse
personalismo, esse mal que causaram. Artista era coisa do povo mesmo, aí
inventaram um tal de palco, o cara foi subindo no palco e um monte de gente lá
em baixo. O ‘pessoazinho’ cá em cima acha que arte é uma coisa de iluminado,
quando, na verdade, a arte está lá em baixo.
Brasil de Fato – Muitos artistas que antes cantavam
no meio popular foram ‘conquistados’ pelas gravadoras. Você já recebeu algum
convite?
Zé Pinto – Tinha uma parceria muito forte com Marquinho
Monteiro. Ele agora está em Teresina (PI). Em São Paulo (SP) uma vez, uma
empresária lá cresceu os olhos sobre nós. Essa mulher estava levando nós para
os caminhos dos porcos, até nos acompanhou nos assentamentos. Mas uma vez
chegamos ao Pontal do Panapanema e ela deixou nós dentro do carro, dizendo ‘não
saia, vocês dois fiquem aí’.
Imagina, a gente conhecia aquele povo todo dos
assentamentos, vivíamos sempre naquelas festas e ela achava que a gente ia só
na hora de dizer ‘agora com vocês Zé Pinto e Marquinho Monteiro’. Quando ela
saiu olhamos um pra cara do outro e eu disse ‘Marquinho que diabo nós está
fazendo aqui? Rapaz, você pensa bem, o povo cansado de ver nossa cara e nós lá
naqueles barraco, comendo junto com aquele povo, tomando cachaça vamos ficar
nessa onda parecendo dois bonequinho de cera?’ Na hora que a mulher viu que a
gente tava misturado lá no meio do povo já começou a ficar meio nervosa.
Aí, eu
disse que nós não estávamos nessa não. Disse: Nosso negócio é outra coisa,
porque se for pra gente ter que mudar nosso sonho, nossa cultura pra poder te
acompanhar, não vai dar certo. Você faz parte de um projeto e nós de outro.
Brasil de Fato – E o seu último trabalho? Do que se
trata?
Zé Pinto – É um CD bem dançante com baiões, forró
pé-de-serra, cantiga em homenagem a Gonzagão que está fazendo 100 anos, onde
batizamos como Um Poema e Submisso. A primeira faixa é a minha filha caçula que
faz a abertura, além de umas músicas que são mais ligadas ao momento da luta, do
embate, das mobilizações que a gente pega mais pesado mesmo. Mas não dá pra
ficar cantando só gritando reforma agrária e falando mal de pistoleiro, se não
nem o povo não aguenta [risos].
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/11510
10/01/2013
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