Viúva de Marighella, a militante feminista, Clara
Charf, fala sobre a sua vida e trajetória política.
Aline Scarso, Da Reportagem
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"Não existe militante não ativo, militar é fazer, é intervir" - Foto: Aline Scarso |
Em seu apartamento no bairro do Bom Retiro, na
cidade de São Paulo (SP), a militante Clara Charf, de 87 anos, nos recebe para
a entrevista. Sempre simpática e com o sorriso no rosto, ela quer saber a
proposta da entrevista. Explico a ela que o objetivo é resgatar a sua
trajetória e apresentá-la, principalmente, à juventude para a qual ainda é
desconhecida. Viúva de Carlos Marighella, um dos maiores inimigos da última
ditadura civil-militar (1964-1984), Clara, expressa humildade e firmeza.
A lutadora ainda conta a voz forte e gosta de
contar as histórias com detalhes. Ouvir sobre a sua vida é praticamente ter uma
aula de história do Brasil, em particular sobre a luta comunista dos anos 1940
a 1960.
Clara Charf é atualmente Conselheira Emérita do
Conselho Nacional pelos Direitos da Mulher e já foi Secretária de Relações
Internacionais do mandato de Luiza Erundina (1989-1993). É militante feminista,
e deu a sua contribuição pela a luta por democracia. Ao falar sobre a sua vida
sozinha, ou ao lado de Marighella, a ativista chora, ri, sofre e se regogiza,
como se os fatos tivessem acontecido há poucos instantes dali. Confira a entrevista abaixo:
Brasil de Fato: Para começar, quem é Clara Charf
como militante política?
Clara Charf: Eu sou uma militante como outra qualquer. O que é
militância? É participação. Desde que eu despertei para as atividades políticas,
entrei em ação. Para mim a militância política é a compreensão dos problemas
sociais e ação. Não existe militante não ativo, militar é fazer, é intervir.
Seja nos problemas das mulheres, sociais, da democracia, eu sempre militei.
Brasil de Fato: Clara, são 87 anos de vida que se confundem com a história do Brasil. Se você tivesse que começar a contar a sua história de algum ponto, qual seria ele?
Clara Charf: Bom, o primeiro momento em que eu me tornei
militante foi quando estava terminando a segunda guerra mundial [1939-1945].
Teve um fato que me marcou muito, que foi quando a Anita Prestes passou pelo
Recife. A Olga Benário, mulher do [Luis Carlos] Prestes, foi presa no Brasil
[em 1936]. Ela estava grávida e o Getúlio Vargas fez um acordo com os alemães
que exigiram que ela, como alemã, fosse enviada para a Alemanha nazista. E a
mandaram pra lá. A mãe do Prestes [Dona Leocádia] começou a fazer um movimento
no mundo inteiro até que conseguiu tirar a criança do campo de concentração.
Daí terminou a guerra, o Prestes saiu da cadeia e a Anita voltou ao Brasil para
encontrar o pai [em 1945]. E em Recife não se falava em outra coisa, todo mundo
foi num comício presenciado por todo movimento democrático, comunista,
não-comunista. Fizeram uma grande concentração pública para apresentar a filha
do Prestes e eu participei. E esse comício marcou muito minha posição política.
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Com a família: em sentido horário, o irmão, Abraão, o pai, Gdal, Clara e a irmã, Sara, em Recife - Foto: Arquivo Pessoal |
Brasil de Fato: O que isso significou para você,
Clara?
Clara Charf: Olha, nasci em 1925 e meu pai não era uma pessoa
politizada, era de origem judaica-russa e achava que a gente não devia se meter
em política porque poderia acontecer alguma coisa. Ele tinha muito receio da
gente ser presa. Mas esse comício, com tudo que aconteceu, com os discursos,
marcou muito minha posição diante da luta política no Brasil, porque até então
eu só trabalhava, fui bancária, fui datilografa, fui taquigrafa. Eu era contra
as injustiças, mas não tinha muita noção de que caminho seguir para acabar com
elas. Mas, desde 1945, fui despertando pra ação.
Brasil de Fato: Quando foi a primeira vez que você
ouviu falar em comunismo?
Clara Charf: Foi quando o Jacob [pai do fotógrafo Bob Wolferson]
foi preso. Uma vez meu pai chegou em casa e disse pra minha mãe: o Jacob, filho
do Davi, foi preso. E eu, que era garota naquela época, perguntei, ‘mas ele era
ladrão?’ Meu pai me mandou calar a boca e disse que a gente não poderia falar
sobre isso em casa. Depois de um tempo, ele foi posto em liberdade. Daí a
família do Davi nos chamou para um chá na casa deles e fui até o Jacob e
perguntei, ‘escuta, por que você foi preso?’ E ele respondeu, ‘porque sou
comunista’. E eu perguntei o que era aquilo. Foi a primeira vez que eu tinha
ouvido aquela palavra. Ele não podia explicar naquele momento, e um dia ele foi
até em casa pra gente conversar. Foi a primeira aula que recebi (chora). E ele
disse assim: ‘comunismo é assim, vai ter uma sociedade que não vai ter
dinheiro, vai ter troca. Se você quer uma camisa, dá outra coisa em troca para
satisfazer a necessidade’. ‘Pronto’, eu disse, ‘sou comunista!’ Foi a primeira
vez então que pensei nesse conceito, de que a gente pode ter uma sociedade mais
justa e que todos podem ter o que precisam”.
Brasil de Fato: Por que você decidiu se organizar
no Partido Comunista?
Clara Charf: Porque era necessário ter um instrumento de
trabalho. Eu tinha despertado pra luta política e tinha que ter os meios. Fui
do movimento de mulheres, do movimento popular, e não estava muito claro pra
mim, eu sabia que aquelas pessoas estavam organizadas para lutar pelos seus
direitos e entrei nessa luta. E quando você decide trabalhar com outras
pessoas, você tem que ter um instrumento, tem que discutir, planejar o
trabalho. Depois é que fui me organizar no Partido Comunista [Brasileiro].
Brasil de Fato: E como você conheceu o Marighella?
Clara Charf: Eu conheci o Marighella tinha 26, 27 anos. Eu não
sabia nada do PC, mas acabei me aproximando de pessoas que tinham ideais
comunistas. Quando vim para o Rio de Janeiro como aeromoça, fiquei mais em
contato, via as campanhas nas ruas, a venda de jornais, a luta pelo petróleo, e
achei que o caminho era esse. Me filiei e fui assumindo cada vez mais funções.
A primeira vez que vi o Marighella, eu ainda era
aeromoça. A gente se conheceu na militância mesmo, ele era deputado [federal
pela Bahia], e eu, quando viajava, levava correspondências do partido aos
estados. A gente se encontrou na sede do Partido Comunista, que era legal
naquela época. Ele olhou, eu olhei, mas não aconteceu nada. Mas fiquei admirada
diante daquele cara simpático, que eu nunca tinha visto e não sabia o que
estava fazendo ali. Depois perguntei dele para o [João] Amazonas e o Mariguella
também perguntou para o Amazonas sobre mim. Depois a gente conviveu na Fração
Parlamentar e começamos a namorar.
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Bancada comunista composta de 14 de deputados e um senador; na época PCB era um partido de massas, com cerca de 200 mil filiados - Foto: Reprodução |
Brasil de Fato: O que era a Fração Parlamentar?
Clara Charf: A Fração Parlamentar era o escritório dos deputados
do partido comunista. Marighela era o responsável pela bancada toda, pois tinha
uma capacidade de organização muito grande e os deputados se preparavam a
partir das informações colhidas ali. E era uma bancada muito ativa, de 14
deputados e um senador, a que mais contribuiu para fazer leis que discutiam
problemas de raça, religião, trabalho. E eu trabalhei no escritório, onde se
produziam todos os discursos, até a cassação do Partido Comunista em 1947.
Quando veio a primeira grande repressão, em 1947, a gente não podia fazer mais
trabalho aberto, só trabalho clandestino.
Brasil de Fato: Como é viver de forma clandestina?
Clara Charf: É horrível, e eu vivi na clandestinidade muitas
vezes. Primeiro nessa etapa de 1947 até quando veio a legalidade de novo;
quando o Juscelino Kubitschek [1956-1961] foi presidente, a gente era
semi-legal; com o Jango [1961 a 1964], vivíamos de forma legal; depois com a
ditadura, vivia de forma clandestina. Quando tinha liberdade, a gente morava
num prédio ou numa casa, com nome legal, verdadeiro. A gente só viveu com nome
verdadeiro da época do Juscelino até o Jango. Foi quando a gente alugou um
apartamento no Flamengo, no Rio, e participei por muito tempo da Liga Feminina
do Estado da Guanabara, uma grande associação de massas até o golpe
[civil-militar em 1964].
Brasil de Fato: Quais as implicações da
clandestinidade na rotina de você e Marighella?
Clara Charf: Bom, em muitas coisas. Havia época que a gente
podia morar juntos, mesmo clandestinos. Mas ninguém poderia ter noção da onde a
gente vivia. Uma das vezes que morei assim foi no bairro Ipiranga, em São
Paulo. A gente tinha que criar condições para que ninguém descobrisse o que
estávamos enfrentando ali. No quintal, eu lavava roupa, cantava, ouvia rádio,
tinha que parecer uma pessoa normal, me chamava Dona Vera. Eu tinha uma vizinha
de origem portuguesa que tinha um filho pequeno e ela me via entrar, me via sair,
mas nunca via o Marighella, que estava sendo procurado e só saia de madrugada
ou à noite. Então, quando eu ia fazer compra, às vezes ela estava no portão e
me chamava para tomar um café, e eu dizia que não podia porque meu marido era
muito ciumento e se ele não me achasse em casa poderia me dar uma bronca. Tudo
mentira né, mas eu tinha que inventar. Mas teve um dia que não teve jeito, ela
tanto insistiu que tive que entrar na casa dela. Logo depois o apartamento foi
localizado e a gente teve que mudar dali.
Meu marido era sempre um viajante, porque ninguém
podia vê-lo. Quando moramos em Santo Amaro, aluguei a casa do meio de um bloco
de três casas germinadas. E eu cantava muito, como se só me preocupasse com a
casa, com a limpeza, com a música. Um dia a vizinha foi até minha casa e
perguntou se eu sabia dar injeção, porque o neto dela estava com febre e ela
precisava dar uma injeção no garoto. E eu queria dizer não, mas ela estava tão
aflita, que fui, dei injeção e saí logo. Desde então, a mulher passou a me
adorar. Quando eu sumia, às vezes a gente ficava semanas inteiras fora, ela
regava minhas plantas. Quando chegava, estava tudo florido.
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Clara mostra seu retrato com Marighella; ao lado do marido, foram quase 20 anos de clandestinidade - Foto: Aline Scarso |
Brasil de Fato: Clara, como era a sua relação com
Mariguella em relação às questões de gênero? Ele era um...
Clara Charf: Machista? Não, não era. E isso é muito bom
assinalar. O que é ser machista? É um cara que não dá valor à mulher, que não
divide tarefas, não é não? É mais ou menos por aí. Nas atividades de casa, ele
sempre respeitou muito o meu trabalho e dividiu comigo as tarefas. Quando me
juntei a ele, eu não sabia cozinhar. Eu disse isso e ele respondeu: ‘não tem
importância que eu sei’. E eu disse: ‘então você vai me ensinar’. A roupa ele
lavava. Eu passava. E isso não é comum, ainda mais naquela época. Os homens não
dividiam como não dividem até hoje as tarefas domésticas. E ele fez isso em
todos os lugares que viveu, quando morou com pessoas que eu conheci depois.
Sempre valorizou o trabalho da mulher, não achava justo não dividir tarefas,
mesmo se a mulher não fosse militante.
O que tornou a vida clandestina menos difícil era o
comportamento dele, porque você viver com uma pessoa que não colaborasse nas
atividades domésticas seria impossível, você se anulava completamente como
militante. Um dia eu tava passando roupa e ele entrou, olhou e disse: ‘Clara,
Clara, não passe roupa quando eu não estiver em casa’. E eu perguntei: 'Por
quê, se você não sabe passar?’ E ele respondeu: ‘Como eu não sei passar, você
passa e eu fico lendo para você em voz alta, para você ouvir’. Quer dizer,
enquanto eu ia passando, ia tomando conhecimento do material que queria ler.
Qual o marido que faz isso? Nisso daí ele foi inédito (ri).
Brasil de Fato: Clara, sobre o Marighella, tem um
filme recentemente lançado. Você aprovou o material?
Clara Charf: Bom, o filme foi a minha sobrinha [a diretora Isa
Grinspum Ferraz] quem fez. E não é fácil fazer um filme, com menos de duas
horas de duração, para contar a história de uma pessoa como ele, que teve uma
vida tão rica, que desde estudante fazia prova em versos. Ele era diferente do
comportamento normal. Mas ela queria buscar o ângulo não só do militante, mas
da pessoa, do homem. Ela falou do tio querido, que aparecia, desaparecia. Às
vezes, ele dormia na casa da minha irmã [Sara] e quando minha sobrinha acordava
tinha florzinhas sobre a mesa. Então, ela guardava dele uma lembrança muito
carinhosa. As facetas principais eram que tipo de homem era aquele
revolucionário, por quais causas ele lutou e como ele foi assassinado. Isso era
mais ou menos o roteiro. E tem depoimentos muito interessantes também. Então,
eu acho que com esse filme dá para entender melhor que tipo de homem era o
Mariguella.
Ele era um homem decente, era um homem valoroso (chora).
É muito difícil falar sobre isso. Você não pode dizer que era um cara perfeito,
porque isso não existe, mas ele era um ser humano muito íntegro, deu a vida
pela causa do povo, sempre ajudou as pessoas que pode na luta. Era um ser
humano com o qual todo mundo tinha prazer em conviver. Ele não era arrogante e
isso é muito interessante, porque tem militantes que acham que são o máximo,
que sabem tudo, que são perfeitos, mas Marighella não tinha esse comportamento,
ele era um cara muito simples, que sabia que já tinha lutado muito nessa vida.
E era muito brincalhão. As crianças o adoravam. Ele se fazia querer pelas
pessoas. E era culto, sempre estudou muito.
Brasil de Fato: Como se sentiu quando você foi
presa?
Clara Charf: Essa já é outra história [Clara estima ter ocorrido
em 1953]. Bom, um dia o Diógenes Arruda Câmara chegou até mim e disse: ‘Clara a
gente está precisando que você vá a Campinas para montar um curso de formação
política aos ferroviários’. Eu tomei o ônibus e fui. Dias antes tinha ido até
um oculista e quando o cara perguntou meu nome não podia falar meu nome
verdadeiro e tasquei Marta Santos. Pronto, ele me deu a receita, coloquei no
bolso e embarquei.
Desembarquei na estação de Campinas (SP) e
reconheci o companheiro que estava me esperando. A gente foi até a casa de
outra companheira, mas chegando lá a casa estava fechada. Você veja só a falta
de responsabilidade! Daí a gente ficou rodando, eu clandestina e ele um
operário da região que estava com mandado de prisão. A direção do Rio não podia
ter me mandado pra Campinas para ser recebida por um companheiro que estava
sendo procurado pela polícia, mas isso é outra história, já passou. Nessa
história de ficar de lá pra cá, a guarda civil percebeu e nos cercou. O
companheiro que conhecia a cidade se mandou e eu fiquei ali. Fui presa com a
mala cheia de livros.
Tinha vários jornalistas na porta da delegacia,
daqueles que ficam esperando para pegar histórias e publicar no jornal. E eu,
branca, jovem que ninguém sabia quem era, aguçou a curiosidade de todo mundo.
Levaram-me para a sala do chefe da polícia que perguntou meu nome e eu falei
Marta Santos. ‘E o que você veio fazer em Campinas?’ Daí eu inventei uma
mentira que não colava. Falei que tinha vindo fazer um tratamento de saúde no
interior, que tinha trazido uns livros para ler para aproveitar o tempo livre.
Ele abriu a mala, viu a aquela quantidade de livros marxistas e me mandou pra
cela.
Só tinha uma cela de mulheres presas, tinha velha,
moça, preta, prostituta, tinha de tudo ali. O guarda abriu a grade e me jogou
pra dentro como se fosse um saco, e disse para as presas: ‘não fale com essa
mulher porque ela é comunista’. Aí elas ficaram me olhando, aquele silêncio,
até que uma delas chegou até mim e perguntou: ‘Cumu, o quê?’ E eu disse:
‘comunista’ (ri). ‘Mas o que qué isso?’ Na hora me deu um treco e eu
disse que se ela tivesse dois rádios, não precisava ficar com os dois e poderia
dar um pra quem não tem. Comecei a explicar dessa maneira bem simples, aí ela
disse assim: ‘então também sou comunista, fui presa porque trabalhava numa casa
que tinha dois rádios e eu levei um pra mim’. Todo mundo riu e, ali, fiquei
famosa entre as presas. Quando o diretor da cadeia viu que aquele negócio tava
ficando perigoso, que eu estava politizando as mulheres, me botaram numa cela
sozinha, no chão, não tinha cama. Fiquei lá por seis meses.
Veio o chefe de polícia de São Paulo e disse:
‘comunista de merda, ou você fala o que veio fazer aqui ou a gente vai acabar
com você!’. E eu não falei nada, mas eles também não podiam fazer nada comigo,
pois já tinha saído no jornal que eu havia sido presa com uma mala de livros.
Quando vi que não aguentava mais, que não ia ter mais jeito, disse: ‘tá bom, eu
só falo na frente de um juiz’. Eu não sabia se era certo, mas foi o que bolei.
Um belo dia, eles estavam lavando o corredor da prisão e perguntei pro
guardinha que me disse que estavam limpando a cadeia porque iria vir o juiz.
Daí apareceu aquela figura de gravatinha e careca. E a imprensa veio junto,
porque saiu nos jornais a notícia de que eu falaria. Quando ele disse assim:
‘dona Marta, eu sou o juiz Fulano de Tal, o que a senhora quer? Pode falar’. E
eu achei aquilo tão desigual, tão covarde, fiquei tão indignada que peguei a
colchonete e joguei, saiu pó pra todo lado e ele se mandou. E o fato saiu nos
jornais, disseram que eu tinha maltratado o juiz.
Finalmente, chegou um dia que me levaram para o
tribunal. Quando estava me preparando para pensar o que ia dizer, entra um
grande advogado comunista, o Altivo Ovando, que pediu licença para o juiz para
falar comigo e me disse assim: ‘Clara, o Partido mandou lhe dizer que você tem
que falar o seu nome, porque se não você vai mofar na cadeia, pois não existe
Marta Santos e a gente não vai poder entrar com o habeas corpus’. Daí não teve
jeito, eu desmontei. Ele foi embora e na hora que o juiz fez a primeira
pergunta, ele disse: 'Nome?' E eu disse: ‘Clara Charf’. Foi aquele espanto. Eu
menti e falei novamente da história do tratamento, como ia fazer o tratamento
em Campinas porque o clima era muito bom, levei vários livros pra ler. Daí os
advogados impetraram o habeas corpus. Eles negaram, mas na segunda tentativa,
eles deram. Por que eles iam me acusar de que? A única acusação era de que eu
tinha livros marxistas, não tinham mais nada contra mim.
Brasil de Fato: Quando você e seus companheiros
ficaram sabendo, em 1956, dos crimes cometidos por Joseph Stalin na União
Soviética, que reação tiveram?
Clara Charf: Bom, começaram a sair muitas notícias do que
acontecia na União Soviética, diziam que Stalin tinha cometido muitos crimes. E
isso teve um impacto muito grande na militância comunista. Chegou um momento em
que a gente achou que a imprensa estava mentindo e dissemos que a gente só ia
se pronunciar depois que uma pessoa nossa fosse até a URSS para saber sobre
isso. E mandaram o Diógenes Arruda que, depois do Luis Carlos Prestes, era a
pessoa mais importante da direção.
Quando ele voltou, o comitê central fez uma reunião
e vieram os dirigentes do país inteiro para ouvi-lo. E eles precisavam de uma
pessoa para fazer a ata e, como eu era taquigrafa e tinham confiança em mim, me
colocaram para anotar. Eu assisti a reunião por causa disso, pois não era da
direção nacional. E foi horrível, era como se tivesse ruído um prédio inteiro,
pois ficou provado que eles tinham cometido muitas barbaridades. O Marighella
chorou, foi a única vez na vida que eu o vi chorando.
Em resumo, uma parte achou que não valia mais lutar
por uma causa quando aquela liderança que se dizia a melhor do mundo tinha
feito tudo aquilo. Um companheiro, que não me lembro o nome, lembrou que uma
coisa eram os erros que o Partido Comunista havia cometido, outra coisa eram os
ideais pelos quais os comunistas estavam lutando. E isso tinha que continuar.
Quando o Marighella se pronunciou, disse que era preciso reorganizar o trabalho
do Partido e continuar lutando pelo socialismo. E nós continuamos.
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Clara com Fidel Castro em Cuba - Foto: Arquivo Pessoal |
Brasil de Fato: Depois que o Marighella morreu, em
1969, e você teve os direitos políticos cassados, acabou se exilando em Cuba
por quase uma década. Como você avalia a experiência que teve por lá?
Clara Charf: Sempre fui admiradora da causa de Cuba, desde a
Revolução Cubana [em 1959], e achava que era o modelo para a América Latina.
Quando começou aquele quadro da ditadura militar, todo mundo perseguido ou
morto, eu não podia mais continuar no Brasil, porque estava com mandado de
prisão. O Marighella tinha sido assassinado. Na lista de nomes de pessoas
cassadas pela ditadura, eu sou uma das primeiras mulheres que perderam os
direitos políticos no Brasil. Sem direitos políticos, processada, perseguida,
não tinha condições de continuar. Aí se discutiu que eu teria que sair do
Brasil. E ir pra onde? E Cuba estava recebendo pessoas perseguidas de toda a
América Latina.
Quando eu cheguei lá, as surpresas eram muitas.
Primeiro, fiquei doente e comecei a ver diferença logo no hospital. Me
colocaram em um quarto com três camas. De um lado estava a esposa de um
militar, no meio estava eu, e do outro lado a faxineira do hospital, mãe de
nove filhos, todos estudando na União Soviética. Quando saí do hospital, fui
vendo as transformações da sociedade. Todo mundo era igual independente do
salário que tivesse.
Como eles tinham escassez de alimentos, fizeram uma
divisão igualitária em todo país para que todo mundo pudesse ter direito a comer
fruta, tomar leite. Cada pessoa tinha uma livreta que indicava a quantidade de
alimentos que podia ser adquirida e que era igual entre a população. Eu fiquei
pasma. Depois fui trabalhar como tradutora, comecei a conviver com as pessoas e
era muito impressionante o avanço. Uma vez uma delegação entrou numa creche e
tinha uma prateleira cheia de presentes, de brinquedos. Perguntaram do que se
tratava e a menina que estava sendo o guia disse assim: ‘Esses brinquedos são
para as crianças do Vietnã’. Todo mundo ficou admirado. Eles educavam as
crianças para serem solidárias com os povos oprimidos que estavam na luta.
Coisas incríveis.
Cuba reorganizou também toda zona de prostituição
naquela época. A Federação de Mulheres fez um trabalho incrível com as prostitutas.
Ofereceram a cada uma delas tratamento, educação. Algumas viraram bancárias.
Eles dividiram a terra, dividiram as casas, anularam todos os alugueis caros e
começaram a fazer um trabalho com a cabeça das pessoas. Agora mudou, e Cuba foi
pouco a pouco se abrindo. Mas antes todo mundo tinha direito à saúde, educação,
habitação.
Brasil de Fato: E você volta com a anistia?
Clara Charf: Sim, quando veio a lei da anistia [em 1979], eu
queria voltar para o Brasil. Mas foi uma dificuldade porque eu não tinha
passaporte. Cuba ainda não tinha relações com o Brasil, então para obter o
documento eu deveria ir para um país que tivesse relações diplomáticas com o
Brasil, e resolvi ir para o Panamá, que era perto da ilha. Chegando lá,
procurei a embaixada do Brasil, disse que era anistiada, que não tinha
passaporte, e me disseram que iriam providenciar. Dias depois disseram que não
poderiam conceder o passaporte sem a autorização do Brasil. Mandaram um telex e
eu voltei no dia seguinte. E o Brasil mandou falar que não me dessem o
documento. Eu ia num dia, voltava no outro e não conseguia nada. Chegou uma vez
que eu disse que se eles não me dessem o passaporte, iria chamar toda a
imprensa internacional – e ia mesmo – e denunciaria o governo brasileiro por
não respeitar a lei da anistia. Finalmente chegou a ordem do Brasil para que
eles me dessem um salvo conduto e não o passaporte. E eu não tinha outra saída,
fiquei preocupada se seria presa, mas o advogado Edvaldo Piveta me ajudou a
entrar. Quando cheguei no aeroporto, ele avisou que não poderiam mexer comigo
porque era anistiada. E foi assim que entrei no Brasil e renasci. Fui tirar
documentação, procurei emprego, já era outra etapa.
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Panfleto de Clara para as eleições estaduais à Assembleia Legislativa em 1982 - Foto: Reprodução |
Brasil de Fato: O Brasil que encontrou era muito
diferente daquele que deixou?
Clara Charf: Imagina, já tinha havido anistia, os movimentos
sociais estavam se organizando, o PT estava em construção. Me chamavam bastante
para fazer palestras. Logo me liguei ao movimento de mulheres pela primeira
Secretaria de Mulheres do PT de São Paulo. E encontrei um emprego numa empresa
de engenharia como auxiliar de biblioteca.
Um belo dia chegou à minha casa um bando de
mulheres do PT, que eu já conhecia da comissão de mulheres e que queriam que eu
saísse como candidata à deputada estadual pelo PT. E eu disse: ‘Vocês tão
loucas?’ Acabei de chegar do exílio, comecei a trabalhar agora, o povo nem sabe
que eu existo. Mas ficaram horas conversando comigo. Não teve jeito, saí
candidata e tive cerca de 19 mil votos. Foi uma campanha linda e faltou um pouquinho
para eu ser eleita.
Brasil de Fato: Clara, você foi perseguida na
ditadura, foi exilada e anistiada. E ainda teve a possibilidade de ver nascer a
Comissão da Verdade para investigar esse período. Como você avalia a Comissão?
Clara Charf: Bom, o importante é que foi constituída a Comissão
da Verdade, não só nacional, como também as comissões que estão se constituindo
nos estados. A Comissão vai trazer à baila o nome de muitas pessoas que até
agora estão debaixo do pano. Cabe agora aos setores que têm interesse que esse
período seja apurado, que ajudem a comissão da verdade. Não adianta só
criticar, tem que agir de alguma forma. E já estão começando a aparecer
denúncias e documentos.
Brasil de Fato: Que valores pautam o seu trabalho
com as mulheres?
Clara Charf: A política do PT para as mulheres tem tudo a ver
com a vida das mulheres no dia a dia. Lutamos pela igualdade de salários, por
posição política. Eu acho ainda pouco, mas de qualquer maneira avançou muito.
Acho que a participação das mulheres exige ser maior na sociedade brasileira. E
temos tido bastante coerência nesse trabalho de sempre manter, junto com as
aspirações do povo em geral, o trabalho específico com as mulheres. Pra mim, a
luta das mulheres é específica, mas não pode ser isolada.
Brasil de Fato: Como você avalia o movimento de
mulheres hoje, principalmente em relação aos movimentos organizados pela
juventude?
Clara Charf: Eu penso assim: sempre fui militante ardorosa pela
causa das mulheres, mas também sempre fui militante ardorosa pela causa do povo
em geral. Nenhuma sociedade se desenvolve se ela só defende uma parte da
população. Quando você defende uma sociedade mais justa e igualitária, tem que
entrar homens, mulheres, crianças. A mulher se defende, defende o marido,
defende o trabalho. Ela tem um acúmulo de responsabilidades que muitas vezes a
sociedade não reconhece. Quanto mais homens e mulheres se entrosarem, e
defenderem a causa de um e de outros, mais fácil será mudar a situação da
sociedade.
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"A Clara só pensa em revolução", diz Lula sobre a feminista - Foto: Arquivo Pessoal |
Brasil de Fato: [Clara mostra várias fotos com
líderes como Dilma Rousseff, Fidel Castro, Michelle Bachelet, Nelson Mandela.
Na imagem em que aparece com o ex-presidente Lula, ao qual Clara tem apreço,
peço para que conte a história daquela imagem].
Clara Charf: Isso foi no primeiro mandato de Lula. Eu nunca
tinha entrado no Palácio do Planalto, e estava um bando de gente. Vi o Lula
parado, a bandeira do Brasil atrás e ele, muito gozador, chegou e disse assim:
‘Clara, você alguma vez pensou em me ver nessa situação como presidente?' E eu
naturalmente disse aquilo que sentia: ‘Ah, eu pensei, mas não pensei que fosse
pela via eleitoral’. Aí foi uma gargalhada geral. E o Lula: ‘Vocês estão vendo
a Clara, só pensa em revolução’.
Brasil de Fato: Em termos de valores e sentimentos,
existe algo que uma pessoa que é revolucionária tem que uma que não pensa em
revolução não tem?
Clara Charf: Eu acho que não pode colocar desse jeito, porque
têm pessoas que não pensam em revolução e que têm sentimentos e valores humanos
muito grande. E têm pessoas que têm sentimentos de mudar a situação do país e
pessoalmente são muito ruins. As pessoas todas pensam em alguma coisa, mas você
não sabe o quê. O que o ser humano quer, de um modo geral, é ter uma vida melhor,
ter possibilidade de estudar, trabalhar, ter uma casa pra morar, poder viajar.
É claro que pra você conseguir isso numa sociedade onde as pessoas não são
iguais, onde existe as diferenças de classe, é difícil. Então você tem também
muitas formas de lutar.
Brasil de Fato: O que os revolucionários têm de
específico, então? O que os define?
Clara Charf: Querer fazer a revolução, querer mudar. A revolução
é a revolta, é mexer naquilo que não está bom, que não está correto. Mas não
quer dizer que todos os revolucionários são perfeitos. A gente tem que
estimular que as pessoas lutem pelos seus direitos.
Mais sobre o assunto:
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/11853
05/02/2013
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