Hoje pagão, o festejo já foi
considerado dia religioso pela Igreja Católica
Foliã em uma antiga festa de carnaval de rua no Rio de Janeiro (Foto: CEDOC) |
O carnaval teria tido suas primeiras raízes na
Antiguidade, entre o Egito e a Grécia, em uma comemoração popular que vibrava
com a chegada da primavera. A festa marcava o fim do longo inverno e suas
vegetações mortas. Era a volta dos dias longos e do sol brilhante, dos frutos
nas árvores e dos passarinhos, das flores de todas as cores, da temperatura
aceitável, da água para lavar tecidos e tomar banho nos rios.
Motivo para
agradecer não faltava e a ocasião merecia uma festa regada a vinho e alegria.
"No mundo antigo, você tem as festas para Dionísio, os bacanais, onde os
próprios deuses visitavam a Terra. Todas as sociedades têm festas que desmontam
a ordem social", comenta o professor e antropólogo Roberto da Matta, autor
do livro "Carnavais, Malandros e Heróis", de 1979.
O téologo Leonardo Boff fala sobre o carnaval e a necessidade do prazer (Foto: Divulgação) |
O teólogo Leonardo Boff lembra que até no carnaval
romano os escravos deixavam de ser escravos durante aqueles dias: "A
sociedade precisa tirar as máscaras e voltar ao seu estado natural", diz..
Nesse ritual pela vida e na inversão da ordem estava o embrião do espírito
carnavalesco.
Festa pagã, graças a Deus
Durante a Idade Média a Igreja Católica adotou a inevitável comemoração primaveril e resolveu incorporá-la como festa religiosa. Para definir uma data, marcou a terça-feira antes da Quarta-feira de Cinzas como a Terça-feira Gorda, Mardi Gras, a última farra onde o povo poderia se esbaldar antes de entrar nos quarenta dias de sacrifício e penitência até a Páscoa.
"O berço do
carnaval ocidental se encontra na Igreja, apesar dos antecedentes na cultura
greco-latina. O próprio nome carnaval lembra esse fato. A palavra é a
combinação de duas palavras latinas: "carnis" que é carne e
"vale" que é uma saudação, geralmente no final das cartas ou no final
de uma conversa. Significa "adeus". Então antes de começar o tempo da
Quaresma que é tempo de jejuns e penitências, se reservaram alguns dias para
dizer "adeus" à "carne"", explica o teólogo e escritor
Leonardo Boff.
O antropólogo Roberto daMatta conta sobre o ritual de inversão do papel social (Foto: Serena daMatta) |
Se o carnaval, como a gente entende, só podia ser
visto a partir da ideologia católica, que proibia o pecado e abria uma
brechinha para o povo, essa festa móvel poderia causar problemas para a Igreja.
"Naquela festa, as pessoas poderiam pecar sem culpa", explica
daMatta.
De aldeia em aldeia, as brincadeiras e comemorações variavam de acordo
com a cultura local. "De festa de cunho religioso passou a ser uma festa
meramente profana, na qual tudo podia ocorrer como bebedeiras e até
prostituição aberta. Aí a Igreja fica em uma situação onde precisa se afastar,
mas nunca totalmente.
Pelo fato de que no tempo medieval tudo era regido pela
religião e pela Igreja, os carnavais se realizavam dentro do espírito de
alegria e de liberdade permitidas por estas instâncias. Leigos podiam se vestir
de bispos e até de papas. As máscaras eram para esconder as identidades e, no
fundo, para dizer que tudo na sociedade - e também na Igreja - são máscaras.
Bobos somos todos que as tomamos a sério e cremos nela. Mas chega um momento
que nos damos conta de que as máscaras são apenas máscaras e que os papéis
sociais são criados e distribuídos conforme a vontade dos que detém o
poder", explica Boff.
Desfile de carnaval de rua (Foto: CEDOC) |
Cheia de regras para uma ocasião que, a princípio,
permitiria excessos, a Igreja não conseguiu defender o caráter casto e
religioso da esbórnia por muito tempo. No Concílio de Trento, em 1545, a
comemoração foi liberada pela Igreja e passou a ser assumida como uma festa
pagã. "Na medida em que a sociedade foi separando o sagrado do profano, o
carnaval escapou do controle da Igreja.
Ganhou sua identidade própria. Mas o
seu significado básico continua o mesmo. O importante é que seja feito pelos
populares, por aqueles que socialmente nada contam. No carnaval eles contam,
são aplaudidos quando normalmente são eles que devem aplaudir", lembra o
teólogo.
Quando passa a ser assumidamente do povo, a pândega
já era comemorada com muito entusiasmo em vários lugares. Os venezianos
adotaram fantasias que lhe permitiam cometer todo tipo de excesso e loucura. As
máscaras das personagens da Commedia dell’arte protegiam o rosto dos
foliões e eliminavam a diferença entre sexos e classes sociais. A festividade
na Itália já era tão consolidada que a partir do Século 13 já tinha sido
oficializada como feriado e recebeu o nome de Carnaval.
Fantasiados de Frankenstein, foliões brincam o carnaval em bloco (Foto: CEDOC) |
O descobrimento do carnaval pelo Brasil
Quando os portugueses chegaram ao Brasil, trouxeram com eles a religião católica e também, é claro, as festas pagãs. Diferentes de outros colonizadores, os portugueses se misturavam com negros e índios.
Nas expressões
de Darcy Ribeiro, essa miscigenação distribalizou índios, desafricanizou negros
e deseuropeizou brancos, fazendo nascer o festivo povo brasileiro. "Os
portugueses não eram orgulhosos como os espanhóis, eles se misturavam mesmo.
Não fosse isso, não teriam feito o Brasil", cita o professor Roberto da Matta
em referência direta ao antropólogo Darcy Ribeiro e ao historiador Sérgio
Buarque de Holanda.
Entre as festas que cruzaram o oceano com os ventos
do Século 17, estava a farra de carnaval que antecedia a Quaresma. Para a
comemoração, os portugueses disseminaram o entrudo, uma espécie de brincadeira
de rua onde escravos e a população faziam um lançamento mútuo de água (nem
sempre limpa) e diferentes tipos de farinha.
Os foliões ficavam todos
lambuzados de alegria. A farra era tanta que durante a Colônia e o Império, o
entrudo chegou a ser proibido diversas vezes. Até mesmo D. Pedro II, dizem os
historiadores, gostava de brincar, jogando água nos nobres na Quinta da Boa
Vista.
Avenida Getúlio Vargas, no Rio (Foto: CEDOC) |
Do entrudo de rua surgiram os cordões
carnavalescos. Esses cordões, segundo o escritor, estudioso da história do
samba e compositor Nei Lopes, eram considerados resíduos dos cucumbis, uma
festa popular marcadamente africana levada pelo som de ganzás, chocalhos,
tamborins, marimbas e pianos-de-cuia.
No cucumbi já se fazia o uso de fantasias
para personagens, com rei, rainha e o capataz, mas também o rei negro, o
caboclo índio e o quimboto feiticeiro. A ideia de inversão social de papéis
nessa festa popular ganhava força também no Brasil, revelando grande
significado sociológico e antropológico. "É uma sociedade que tinha muito
escravo, que tinha esses elementos culturais, sim. Mas no Brasil se tem
preconceito, mas não se tem segregação", explica da Matta fazendo uma
menção ao Mardi Gras comemorado na Congo Square de New Orleans, onde a
segregação era marca do carnaval.
Boff complementa: "O carnaval é
especialmente importante para os afrodescendentes, que sempre estiveram por
baixo, eram os invisíveis. Agora se tornam visíveis, mostram a humanidade que
lhes tinha sido roubada e continua ainda a ser roubada. Daí que no carnaval
mostram todo o seu potencial criador. Bem dizia Betinho (o antropólogo Herbert
de Souza): o carnaval carioca é a nossa Mitsubishi, querendo dizer, que
funciona muito bem", brinca. Para o teólogo, é clara a função social
terapêutica da festa onde todos podem se recriar, dar vazão ao seu imaginário.
"Essa reviravolta, para acontecer, deve vir acompanhada de uma mudança de
consciência; daí a importância da bebida e da comida: elas alteram as relações
entre todos. O tempo da liberdade de cada um ser, pelo menos por um momento,
aquilo que gostaria de ser".
Desfile das escolas de samba, já com alas organizadas (Foto: CEDOC) |
O surgimento e popularização das escolas de samba
Os ranchos se popularizaram somente no Século 19, com a chegada da Família Real no Brasil. Diferente dos fedorentos e desorganizados cordões, como apontou Nei Lopes, os ranchos aparecem como óperas ambulantes de um grupo de socialização e convivência.
Segundo o pesquisador, o famoso rancho carioca Ameno Resedá,
fundado em 1907, teria se autointitulado "rancho-escola", dando
origem a denominação que viria a ser "escola de samba". Nascia então
a sociedade carnavalesca da burguesia embalada por maioria negra. Aqui, a
mistura contagiante e agregadora, o ritmo das mulatas, a alegria e os tambores
africanos puxam foliões de todas as classes sociais.
Em crítica humorada, folião aparece de Miss Miséria (Foto: CEDOC |
Nos anos 20, a indústria fonográfica começa a
distribuir os primeiros sambas gravados, tornando o ritmo popular em todo
Brasil. Já na década de 30, escolas de samba começam a competir entre si na
Praça Onze, no centro do Rio. Na competição, já estavam no samba Portela,
fundada em 1923, Mangueira, em 1928 e Unidos da Tijuca, em 1931. A disputa era
boa.
A profissionalização das escolas seguia. Nos anos 40 e 50, surgiram, entre
outras, a Império Serrano (1947), a Salgueiro (1953), a Estácio (1955). Na
década de 50, surgem as primeiras escolas de samba de São Paulo, pois antes a
festividade ainda era comemorada com os cordões de ruas, em bairros e avenidas.
Durante os anos 60, com a força da televisão na
disseminação da cultura popular - principalmente o que se passa no eixo Rio - São
Paulo, o Brasil já pode acompanhar as competições das escolas cariocas.
"Aquele é provavelmente o momento do ano em que se tem mais competição
popular, da escola, da mulher mais bonita, da melhor sambista, da competição
positiva", pontua da Matta. O cinema não fica atrás.
O filme "Orfeu
Negro" (1959), de Marcel Camus, faz um paralelo com a mitologia grega para
contar a importância do carnaval brasileiro. Com trilha sonora de Vinicius de
Moraes, Tom Jobim e Luiz Bonfá, o filme leva Palma de Ouro em Cannes naquele
ano e mostra para o mundo o nosso carnaval.
O showbusiness e os blocos de rua
Passarela Professor Darcy Ribeiro, na Avenida Marquês de Sapucaí (Foto: Divulgação) |
Nos anos 80, o Rio de Janeiro ganha o Sambódromo
projetado por Oscar Niemeyer e as escolas de samba passam a desfilar em palco
definitivo na Marquês de Sapucaí.
Nos anos 90, o mesmo arquiteto é convidado pela prefeitura de São Paulo para
fazer o Sambódromo do Anhembi.
Os desfiles populares que aconteciam nas
avenidas Presidente Vargas, no Rio, e Tiradentes, em São Paulo, mudam de cena.
Com a indústria do entretenimento dominando o carnaval, muito do seu sentido
original e ligação com a ideia de Quaresma se perdeu. "Tem ainda quem
comemore lembrando da origem, tem quem
brinque sem saber mais o porquê aqueles dias merecem tanta liberdade e, tem
gente que, como eu, atualmente, usa a ocasião simplesmente como um feriado para
descansar", comenta da Matta.
Quando cai o carnaval?
Calendário primitivo (Foto: Divulgação) |
A partir da era cristã, o Carnaval começou a ser
calculado em razão do equinócio (e da Páscoa). O dia da Páscoa, por definição,
é o primeiro domingo após a lua cheia que ocorre após o equinócio vernal
(período que assinala a entrada da primavera no Hemisfério Norte e do outono no
Hemisfério Sul), e pode cair entre 22 de março e 25 de abril. Para se
calcular o Carnaval, basta subtrair 47 dias do domingo de Páscoa.
Isso
porque são os quarenta dias que antecedem a ressurreição de Cristo, época na
qual os católicos deveriam se privar de prazeres em sentimento à morte de
Jesus. Como o período implicava em sacrifício, os dias que antecediam o início
da Quaresma precisavam ser aproveitados com muito gosto, liberdade e prazer.
Fonte:http://redeglobo.globo.com/globocidadania/noticia/2013/02/quem-inventou-o-carnaval-e-livrou-folioes-da-culpa-pelo-prazer.html
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