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quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

MULHER


Walnice Nogueira Galvão, professora emérita da FFLCH-USP, indica filmes e livros relacionados aos que querem entender e pensar sobre o papel da mulher na história e no presente. O texto já foi publicado pelas revistas Teoria e Debate, Cult e Editora Expressão Popular na seção: Batalha das Ideias a quem agradecemos.

 
Walnice Nogueira Galvão
 
I – UM LIVRO

Carla Bassanezi Pinsky e Joana Maria Pedro, Nova História das mulheres no Brasil, Campinas, Contexto/Unesp, 2012, 555 páginas.
Surgindo na esteira de História das mulheres no Brasil - organizado em 1997 por Mary Del Priore e a mesma co-autora, Carla Bassanezi - este livro visa a operar uma atualização nos estudos de gênero, pondo em dia os quinze anos que transcorreram.
A Apresentação expressa o intuito coletivo de escrever com clareza, de maneira acessível ao leitor culto, sem fingir complexidade manipulando o sibilino. Por isso, o livro se oferece como assessoria a múltiplos objetivos, inclusive políticas públicas. Como a questão das mulheres tem-se desenvolvido muito, é uma boa coisa ter à mão este compêndio.

 

Nas últimas décadas de movimento feminista os estudos de gênero se expandiram entre nós, mostrando um horizonte que mal poderíamos sonhar desde a primeira edição da tese universitária de Heleieth Saffioti, A mulher na sociedade de classes – mito e realidade, em 1969, pela Vozes. Ao lado de O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, tornou-se leitura obrigatória. Desdobrando o leque, teríamos sondagens não só em sociologia, mas também em psiquiatria e psicanálise, antropologia, história recente e remota, semiótica de mídia e de estereótipos, cultura popular, religiões, artes. É bom lembrar igualmente a paciente operação de resgate da produção literária feminina perdida no passado, ora em curso. Nesses anos, os resultados avolumaram-se de tal maneira que hoje constituem um acervo respeitável: ignorância por falta de fontes e pesquisas ninguém mais pode alegar.
Por outro lado, nas medidas de fato e de direito tem-se avançado muito. Nunca é demais louvar a legislação em inúmeros atos, consubstanciados na Lei Maria da Penha, que criminaliza a violência doméstica: o vínculo conjugal não mais legitima o espancamento. As Delegacias da Mulher são outra conquista importante. Basta pensar na chacota a que as queixosas estão sujeitas quando denunciam casos de estupro a policiais homens.
E o que mais? A União, os estados e os municípios hoje dispõem de secretarias especializadas para assuntos femininos, sem falar nas várias Ongs. Mesmo os partidos políticos decidiram fixar cotas para cargos eletivos, embora aqui a realidade ainda esteja longe do ideal. Esses partidos também realizam pesquisas sobre a situação da mulher, além de manterem departamentos especificamente dedicados a ela. Dispensada de adotar o sobrenome do marido, ao casar, a consorte não mais é considerada como menor aos olhos da lei no que diz respeito à propriedade e ao dinheiro. Mudaram as disposições em relação a divórcio, que aliás é uma conquista recente, e a adultério. A ignominiosa figura da “legítima defesa da honra”, que permitia aos homens assassinar as mulheres que diziam não, deixou de ser invocada. Sabemos que mortes por esse motivo ainda ocorrem, mas sua legitimidade passou a ser questionada. A brutalidade no trato, inclusive dentro do lar, tem sido acusada e combatida por tudo quanto é meio. E as leis relativas ao aborto, se progridem a passo de tartaruga, ao menos estão na ordem do dia. Até futebol profissional, imaginem, as brasileiras hoje podem jogar, após a permissão conferida por um decreto de 1979.
É admirável que tudo isso se passe no maior país católico do mundo, com a Igreja brandindo o fogo do inferno e estigmatizando gays, contracepção, aborto, divórcio. Em outro, de credo protestante, os Estados Unidos, as barreiras têm sido progressivamente derrubadas, sempre com muita luta. A Planning Parenthood exerce uma formidável presença, desde que, em 1916, uma dedicada ativista, Margaret Sanger, abriu um posto no Brooklyn, em Nova York, voluntariamente oferecendo serviços de controle da natalidade às mulheres das favelas, que inflacionavam sua miséria tendo um filho atrás do outro. Pagaria com processos e prisões tanta abnegação. Hoje a associação conta com 820 clínicas espalhadas por todo o território e um orçamento de 1 bilhão de dólares, sendo o maior provedor de saúde sexual e reprodutiva do país. Além de constituir, naturalmente, um baluarte na luta pelos direitos das mulheres. Fornece contraceptivos de todo tipo, desde pílulas até dispositivos mecânicos, e faz abortos legais dentro de certas condições. Não é só americana: existe, embora não com tamanha força, no resto do mundo. Que sua estratégia é   crucial testemunham as bombas, atentados e assassinatos de médicos ou funcionários, que se repetem até hoje. Ergue-se como um modelo invejável para outras sociedades, servindo de inspiração enquanto não for copiado.
Estamos longe disso, mas nossos avanços têm sido notáveis e estão em contínuo processo, embora com os habituais altos e baixos.
Como ninguém ignora, a luta se trava em escala planetária. Ainda assinamos petições para salvar nossas companheiras da morte por lapidação quando acusadas de traição, na África e no Oriente Médio, muitas vezes com base em falsas alegações dos maridos que acham mais barato esse recurso. Mesmo assim, é um passo à frente que um minúsculo punhado de moças da Arábia Saudita participe das Olimpíadas de 2012 pela primeira vez na História, não obstante portando obrigatoriamente o véu.
Faz parte desse amplo movimento social a frente de produção intelectual. As duas Histórias que compulsamos mostram quanto e quão relevante tem sido o progresso. Quinze anos depois da primeira, algumas áreas são novamente contempladas, como, e não podia deixar de ser, a família, a sexualidade, a escravidão, o trabalho, a violência, a educação. Mas também temas novos como o direito, a velhice, a infância, o lazer, as guerreiras, as migrações internacionais. Destaca-se entre estes o depoimento de uma militante dos movimentos indígenas, de nação Kaingang, que já fez estudos superiores, apetrechando-se para analisar objetivamente a própria condição. Os 22 ensaios dirigem-se de preferência aos tempos mais recentes. A notar que facilitam a tarefa do leitor, graças ao cuidado de encimar no Índice cada título, às vezes enigmático ou poético, por uma súmula de duas ou três palavras que explicitam o conteúdo.  
Enfim, o leitor, com este livro nas mãos, pode-se beneficiar de um longo processo: terá aqui, reunido, um caleidoscópio das numerosas investigações que hoje integram uma verdadeira biblioteca. A universidade foi o terreno fértil onde os estudos de gênero vicejaram, com centros de pesquisa, revistas e teses que se tornaram livros, abrindo ou aprofundando as perquirições. Segue-se que o movimento feminista ganhou em institucionalização o que perdeu em voltagem libertária. E, na impossibilidade de compulsar toda essa monumental produção, este volume, constituindo um mostruário do que há de melhor nos estudos de gênero, ainda tem a vantagem de fornecer textos a cargo de especialistas: elas (e eles) sabem do que estão falando.

II – ALGUNS FILMES

A propósito de Malala ou A violência contra a mulher 

1)      Dormindo com o Inimigo (Sleeping with the enemy) -  dir. Joseph Ruben – Estados Unidos, 1990
Quando examinamos filmes que tratam da violência contra a mulher, surpreende-nos que  quase sempre focalizem árabes, negros e pobres, ou relações irregulares. É raro encontrar filmes que mostrem brancos abastados espancando suas mulheres dentro do casamento, alvo da Lei Maria da Penha. Um deles é este, com Julia Roberts, em que, num casal perfeitamente normal, o marido é tão abusivo que a única solução encontrada pela esposa é fingir um acidente mortal e esconder-se bem longe. Semelhante é Nunca mais (Enough), com Jennifer Lopez, em que a protagonista foge do marido espancador levando a filha pequena. Vale a pena ver, na mesma linha, o espanhol Pelos meus Olhos (Te Doy mis Ojos), dirigido por uma mulher, Icíar Bollaín, e premiado com o Goya, o Oscar da Espanha. Por outro lado, é de notar que a violência contra a mulher seja frequente nos seriados televisivos de detetives, como as várias CSI. Já houve até um episódio glosando o escândalo do presidente francês do FMI, que no ano passado atacou sexualmente num hotel de Nova York uma  arrumadeira negra e muçulmana. 

2)      Para Sempre Lilya (Lilja 4 Ever)- dir. Lukas Moodysson – Suécia, 2002
Filme sueco que aborda de frente um dos piores problemas relacionados a mulheres atualmente: o tráfico de corpos. Entre as originárias dos países do Leste estima-se em 100.000 pessoas só nos últimos dez anos, enganadas sob o falso pretexto de obter emprego nos países ricos. Vendidas, drogadas, estupradas e subjugadas, são forçadas a se tornarem prostitutas profissionais, em redes dominadas pelos piores criminosos, que as escravizam e punem a recalcitração com morte. É o caso de Lilja, que no auge do desespero ante as tentativas frustradas de se libertar, acaba por suicidar-se aos 16 anos. O caso é verídico e comoveu o mundo, quando ocorreu na Escandinávia. Outros grandes fornecedores para os países ricos são as Filipinas e o Brasil.

3)      Mooladé – dir. Ousman Sembene – Burkina Faso, 2004
O diretor senegalês que é considerado como o pai do cinema africano trata de um problema gravíssimo. Numa aldeia no Senegal, as meninas aterrorizadas não querem mais ser submetidas à excisão ou clitoridectomia. Por isso, as mulheres mais velhas acolhem-nas em sua parte da aldeia, pondo em prática o “direito de asilo” (Mooladé), impedindo que os homens ultrapassem os limites territoriais para executar a atroz cirurgia. Vê-se o embate entre duas tradições, ambas ancoradas no passado e sancionadas, sem que uma predomine sobre a outra. Já o filme Flor do Deserto mostra uma menina que não conseguiu escapar dessa sina, fugindo, aos 13 anos, de sua família de pastores nômades na Somália.

4)      Monstro - Desejo Assassino (Monster) – dir. Patty Jenkins – E.U.A., 2003
Prostituta branca nos Estados Unidos, após ser maltratada, estuprada, assaltada, etc., volta sua ira contra os clientes e passa a assassiná-los. É um caso célebre, em que a mulher na vida real foi condenada à morte e executada, após matar sete homens. Deu o Oscar de melhor atriz a Charlize Theron, que, bela e elegante modelo de Christian Dior no intervalo entre seus filmes, desfigurou-se para viver a personagem e despertou muita admiração. A mesma atriz encarnou, no filme Terra Fria, uma trabalhadora branca numa mina nos Estados Unidos que, estuprada ao labutar nos subterrâneos, resolve denunciar e processar seu algoz. Consta que, na vida real, seria o caso jurídico pioneiro no país.

5)      Poesia (Shi)– dir. Lee Chang-dong - Coréia do Sul, 2010
Filme sulcoreano que se dedica a denunciar o machismo de uma forma sutil, conforme três níveis do entrecho. O começo é sensacional: vê-se um grupo de crianças brincando no meio do capim de beira-rio, ao sol e com passarinhos cantando. Quando o espectador pensa:  “Mas que clichê mais piegas”, lá vem o cadáver da garota boiando rio-abaixo. O filme é feito pelo ponto de vista da avó, triplamente oprimida: por um neto dentro de casa que a explora e humilha; por um inválido de quem é empregada doméstica, única fonte de renda para sustentar o neto e o filho; e pelo filho doente que vive às suas custas e de quem cuida. O neto é cúmplice no estupro coletivo da garota de 14 anos, que, repetido durante meses, levara-a ao suicídio. Os pais dos rapazes estupradores juntam-se para encobrir o crime e a avó é a única mulher no grupo. Notável atuação da protagonista, notável conjunto de problemas. Premiado no festival de Cannes, entre outros.

6)      A Separação – dir. Asghar Farhadi – Irã, 2010
Se a menina Malala foi baleada no Paquistão pelos talibãs só porque queria ir à escola, a violência contra a mulher aparece sob outras formas naquelas paragens do mundo. Em Teerã, o divórcio no seio de um casal moderno em que a esposa tem uma carreira provoca ondas de choque. O foco do filme é a empregada doméstica, cuja vida é alterada de repente, enquanto as coisas vão piorando numa sucessão de pesadelo. Premiadíssimo, inclusive com o Oscar e em Cannes. O diretor, que passou longo tempo na prisão por causa de seus filmes, também fez Procurando Elly, em que, mesmo num ambiente moderno, o machismo se manifesta e vai crescendo ao ponto de culpar a moça desaparecida por vários crimes. Mas também pode chegar ao assassinato em defesa da honra da família, como no filme turco Quando partimos, no qual nem fugindo para Berlim a mulher estará a salvo. Ainda ficam nos devendo um filme sobre a lapidação de esposas, quase sempre falsamente acusadas de adultério pelo marido, recurso mais barato que o divórcio.
                                                    
7)      A Vida Secreta das Palavras (The Secret Life of Words) – dir. Isabel Coixet – Espanha, 2004
Nas guerras balcânicas que devastaram a ex-Iugoslávia, calcula-se que 40 mil mulheres foram sistematicamente vítimas de estupro coletivo e repetido, com o objetivo de “limpeza étnica”, ou seja, impregnar a raça inferior com a raça superior. Uma sobrevivente, exilada em outro país e com um emprego humilde, leva a vida avante carregando na lembrança os horrores por que passou. Premiado com o Goya, o Oscar espanhol. Em segredo, filme bósnio dirigido por Jasmila Zbanic, trata das mulheres estupradas em Sarajevo, com delicadeza e reticência. Uma menina cresce pensando que é filha de herói tombado na guerra, para descobrir que sua mãe é uma dentre aquelas mulheres. Urso de Ouro no festival de Berlim, em 2006

                                                          
Walnice Nogueira Galvão – Professora Emérita da FFLCH-USP


Fonte:http://editora.expressaopopular.com.br/batalha-das-ideias/assunto-mulher 

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