Por: Márcia Junges
Figura materna é
fundamental na estrutura do povo kaiowá, frisa o antropólogo Levi Marques
Pereira. Os homens indígenas desse povo legitimam a importância da mulher e as
crianças têm um convívio prolongado e próximo com suas mães.
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Mulheres Kaiowá em Ritual |
Um papel de destaque.
Esse é o lugar conferido à mulher kaiowá dentro de sua sociedade. De acordo
como antropólogo Levi Marques Pereira, “é possível dizer que as mães têm sido o
principal sustentáculo dessas sociedades.São elas as principais responsáveis
pela reprodução cultural, ensinando a língua e uma série de procedimentos
culturais para as crianças, além de estarem presentes no dia a dia, oferecendo
carinho e proteção”.
O processamento dos
alimentos e o fogo culinário que também serve para aquecer a família e espantar
insetos, também estão a cargo da mulher. “Os homens compreendem que a figura
materna é essencial para sua sociedade. Tal figura se inspira no comportamento
dos deuses, que nos patamares celestes vivem com suas mulheres e filhos”,
aponta Levi. Quanto às crianças, o pesquisador afirma que desde pequenas elas
“desenvolvem sentimento de liberdade e autonomia e, consequentemente, pouca
disposição de seguirem um líder autoritário”. As reflexões fazem parte da entrevista
seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.
CONFIRA
A ENTREVISTA ABAIXO:
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Levi Marques Pereira |
IHU
On-Line - Há um traço comum entre as mães nas diferentes
culturas?
Levi
Marques Pereira - Creio que sim. Mesmo não entrando nas
discussões do campo da biologia, é possível afirmar que nas diferentes culturas
a gestação e a maioria dos cuidados práticos com a criança nos primeiros
momentos após o nascimento é realizado pela mãe, especialmente a amamentação,
que cria um forte vínculo entre as duas. As distinções de gênero, que propõem a
cisão do mundo humano entre masculino e feminino a partir da significação
cultural do dimorfismo sexual, só gradualmente vão se estabelecendo nas
crianças. Até que as percepções de gênero e das distinções geracionais comecem
a se estabelecer, a identificação da criança com a mãe tende a ser profunda nas
diferentes culturas.
IHU
On-Line - Qual é o papel e a importância da figura materna na
sociedade indígena?
Levi
Marques Pereira - O antropólogo sempre começa a responder
uma pergunta desse tipo afirmando que isto pode variar muito de uma sociedade
indígena para outra. Em geral, as mães indígenas são extremamente cuidadosas
com suas crianças, dedicando a elas muito tempo, aplicado em cuidados práticos
e rituais. Entre os kaiowá de Mato Grosso do Sul, falantes de língua guarani, a
figura materna é bem distinta na nossa própria sociedade. Primeiro porque a
profundidade do vínculo da mãe biológica com a criança depende de fatores
sociais externos à relação que se estabelece entre elas.
A estabilidade conjugal
é um dos principais fatores – quanto mais forte for o laço conjugal entre os
pais da criança, maior será o vínculo entre a mãe e a criança, o mesmo valendo
para a relação entre o pai e a criança. Outro fator é o grau de inserção do
casal e os filhos em um núcleo de família extensa ou parentela. Quanto maior
for essa inserção, mais destacados serão os papéis e a importância da figura
materna na sociedade kaiowá. Assim, a estabilidade conjugal e a inserção do
núcleo familiar na parentela são requisitos para plena realização das
atribuições que mais dão destaque à figura materna entre os kaiowá. A plenitude
da realização a respeito de quando a mulher se torna articuladora da parentela
torna-se referência na agregação de seus filhos e netos, demonstrando a
capacidade de promover uma convivência harmônica na parentela.
IHU
On-Line - Que outras funções a mãe indígena desenvolve na
sociedade?
Levi
Marques Pereira - A mãe indígena é produtora, geralmente
muito envolvida nos cuidados com as lavouras, cujo trabalho de derrubada,
limpeza e plantio normalmente é realizado pelos homens. Também atua na coleta
de frutos e outros recursos existentes no ambiente. A mãe indígena controla o
processamento de alimentos, que se realiza no fogo culinário. Controlar o fogo
lhe dá a prerrogativa de alimentar os membros de sua família. O fogo também
aquece, espanta os insetos, enfim, protege. Por exemplo, entre os kaiowá, as
pessoas se sentam ao redor do fogo para tomar mate ao amanhecer ou ao
anoitecer, sendo também uma metáfora para a união do grupo familiar, pois nesta
roda não costumam sentar pessoas que não pertencem à família.
IHU
On-Line - Como os homens indígenas compreendem a figura
materna?
Levi
Marques Pereira - No caso dos kaiowá, as distinções entre
homens e mulheres instauram também algumas hierarquias, muitas vezes
questionadas pelas mulheres indígenas, vivenciada de distintas maneiras nas
diferentes parentelas. Os homens compreendem que a figura materna é essencial
para sua sociedade. Tal figura se inspira no comportamento dos deuses, que nos
patamares celestes vivem com suas mulheres e filhos. Os xamãs kaiowá, homens e
mulheres, visitam as famílias divinas, interagem com elas, observam o modo como
se comportam e tentam implantar tais modos nas relações que estabelecem com
seus patrícios humanos.
IHU
On-Line - Como funciona a organização social familiar dos
kaiowá?
Levi
Marques Pereira - Ela é baseada na família extensa ou
parentela. Cada parentela é composta por um número variável de famílias
nucleares, dificilmente superior a cinquenta. Uma comunidade local, que eles
denominam de tekoha, é composta por três a cinco parentelas, aproximadamente. A
parentela é organizada por um casal de expressão, que através do carisma agrega
o grupo de parentes em torno de si. Ela segue a orientação de desse casal, que
tem a atribuição de orientar e aconselhar. O papel da mulher é de suma
importância na organização da parentela. Geralmente a esposa do articulador é
também articuladora política, além de parteira, e líder religiosa.
IHU
On-Line – Afirma-se que as mães indígenas nunca abandonam
seus filhos, levando-os para onde quer que vão. Como podemos compreender a
relação entre mães e filhos nessa cultura?
Levi
Marques Pereira - No primeiro ano de vida a criança passa
o tempo todo ao lado da mãe. Muitas a carregam junto ao corpo e ela pode
facilmente alcançar o peito e mamar sempre que tiver necessidade. Quando começa
a caminhar ela passa a desfrutar de muita liberdade para explorar o ambiente. A
educação indígena estimula na criança o senso de cuidado consigo mesma, o que
leva a independência precoce (para os padrões praticados na nossa sociedade). É
comum ver uma criança muito jovem subindo em árvores, ou mexendo com instrumentos
cortantes sem receber represália dos pais. Desde jovem desenvolvem sentimento
de liberdade e autonomia e, consequentemente, pouca disposição de seguirem um
líder autoritário.
IHU
On-Line - Quais são os rituais ligados ao nascimento de uma
criança indígena?
Levi
Marques Pereira - No caso dos kaiowá são muitos os
rituais. Eles começam desde que a mulher engravida e envolvem regras
alimentares e comportamentais que devem ser observadas pela mãe e pelo pai da
futura criança. Quando a criança nasce continua a necessidade de observar esses
cuidados, que vão se afrouxando à medida que ela cresce. Mais uma vez, vale
mencionar que os cuidados são mais observados no caso de casais com maior
estabilidade conjugal e que estão mais bem integrados na parentela. A
observação de tais cuidados está intimamente relacionada com as expectativas
sociais que se projetam para a criança, instaurando processos de diferenciação
social desde a primeira infância.
IHU
On-Line - Quais são os maiores desafios de uma mulher
indígena que é mãe?
Levi
Marques Pereira - No caso dos kaiowá parece ser a
dificuldade de inserir sua família nuclear em uma parentela com grau mínimo de
coesão, dado a enorme fragmentação a que as parentelas estiveram sujeitas com o
processo de perda do território. Isto levou ao aumento das separações dos
casais e a dispersão das crianças, adotadas por parentes que também muitas
vezes não conseguem atender às necessidades básicas das crianças e proporcionar
os cuidados rituais para o desenvolvimento satisfatório.
IHU
On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não
questionado?
Levi
Marques Pereira - Dada as difíceis condições históricas
enfrentadas pela maior parte das sociedades indígenas, é possível dizer que as
mães têm sido o principal sustentáculo dessas sociedades. São elas as
principais responsáveis pela reprodução cultural, ensinando a língua e uma
série de procedimentos culturais para as crianças, além de estarem presentes no
dia a dia, oferecendo carinho e proteção.
Levi
Marques Pereira - Graduado em Ciências Sociais pela
Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC-Campinas, especialista em
História da América Latina pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul –
UFMS, é mestre e doutor em Antropologia Social pela Universidade Estadual de
Campinas – Unicamp e Universidade de São Paulo – USP, respectivamente, com a
tese Imagens kaiowá do sistema social e seu entorno. É pós-doutor pela Unicamp
e leciona na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande
Dourados – UFGD. De sua produção bibliográfica, destacamos Os Terena de Buriti:
formas organizacionais, territorialização e representação da identidade
(Dourados: Editora da UFGD, 2009). Também é um dos autores de Ñande Ru
Marangatu: laudo pericial sobre uma terra kaiowa na fronteira do Brasil com o
Paraguai, em Mato Grosso do Sul (Dourados: Editora da UFGD, 2009).
Fonte: http://campanhaguarani.org.br
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