Em
entrevista ao Brasil de Fato, Vladimir Safatle, professor de filosofia da USP,
aponta limitações do lulismo e a falta de radicalidade da esquerda.
Guilherme
Diniz da Silva, de São Paulo
Autor
de “A esquerda que não teme dizer seu nome”, Vladimir Safatle tem sido um dos
mais notáveis intelectuais a discutir as questões filosóficas e morais da
esquerda mundial. Os desafios impostos pela modernidade e pela crise do
capitalismo internacional são alguns dos temas que o professor de filosofia da
USP abordou em entrevista ao Brasil de Fato.
Confira abaixo a entrevista.
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Em entrevista ao Brasil de Fato, Vladimir Safatle,
professor de filosofia da USP, aponta limitações do lulismo e a falta de
radicalidade da esquerda
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Brasil de Fato - O senhor demonstrou no seu livro A
esquerda que não teme dizer seu nome que a principal luta política é pela
redução das desigualdades socioeconômicas e que a esquerda deve ser
“indiferente às diferenças”. E que um plano político orientado sob a
perspectiva do igualitarismo poderia ser, por exemplo, a determinação de um
“salário máximo”, de até vinte vezes o valor do salário mínimo. A proposta de
uma política da indiferença de um Estado pós-identitário é possível atualmente
no Brasil?
Vladimir Safatle - A ideia de um salário máximo foi
apenas um exemplo visando mostrar como políticas de combate à desigualdade
podem ser aprofundadas. Na verdade, diria que a luta política deve ser dupla.
Por um lado, pela limitação brutal das desigualdades econômicas. Por outro,
pela compreensão de que as sociedades contemporâneas são animadas por “zonas de
indiferença cultural”. Isto passa por quebrar a compreensão da cultura como
ponto de clivagem da vida social. Temos atualmente a tendência de acreditar que
sociedades complexas são assombradas por diferenças culturais profundamente
irreconciliáveis, com esta que passaria, por exemplo, entre comunidades
muçulmanas de imigrantes pobres e classe média “cosmopolita” dos grandes
centros europeus. No entanto, a única maneira de superar tais pontos de colisão
passa por mostrar como as diferenças externas entre dois grupos são, no fundo,
diferenças internas a cada um deles. Por exemplo, não há nada parecido com uma
“visão islâmica de mundo”. Ela é tão clivada e contraditória quanto as
diferentes visões de mundo que podem existir entre um evangélico convicto e um
cristão que há anos não passa na porta de uma igreja. Insistir nestes pontos é
uma estratégia possível para impedir que pretensas diferenças culturais se
transformem no bloqueio da vida social.
Brasil de Fato - Também foi trabalhada a questão da
incapacidade de qualquer ordenamento jurídico representar adequadamente a
sociedade, visto que o Estado Democrático de Direito impede o exercício da
justiça ao não reconhecer a “legalidade da violação política”. Pode-se dizer
que o caso da decisão judicial de reintegração de posse do Pinheirinho em São
José dos Campos (SP) serve de exemplo da fragilidade do Estado e da legalidade
da violação política?
Vladimir Safatle -Creio que este é um bom exemplo
de como justiça e direito podem se dissociar, mesmo no que convencionamos
chamar de “Estado democrático de direito”.
Brasil de Fato - Ao criticar a homogeneidade
política e defender a necessidade de radicalizar os extremos políticos na
revista Carta Capital, o senhor observou que os partidos PSD e PSB são
“partidos-coringa”, pois não representam nenhum setor da sociedade e fazem todo
tipo de aliança política. Vemos hoje que o governo federal está cada vez mais
associado a partidos como PMDB, PSB e PSD. Contudo, ainda são discutidas
algumas propostas como a cobrança de impostos sobre grandes fortunas. Como o
senhor avalia a viabilidade de efetivação de uma proposta dessa magnitude no
governo atual com tais alianças?
Vladimir Safatle - Não creio que nada desta natureza
será aprovado por este governo. Não há razão alguma para acreditarmos que há
algum movimento nesta direção. Já se passaram dez anos desde o primeiro governo
Lula e, vejam só, dez anos depois não há sequer um projeto no Congresso Nacional
para a taxação de grandes fortunas. No interior do lulismo, todas as políticas
que poderiam radicalizar conflitos de classe foram e serão evitadas.
Brasil de Fato - Quais seriam os motivos que
levaram o discurso de esquerda no Brasil a perder a sua radicalidade?
Vladimir Safatle - Incapacidade em fazer as pessoas
sonharem com um futuro diferente e melhor. A esquerda não consegue mais
fornecer uma imagem crível de sociedade onde nossos problemas estruturais serão
vencidos. Se é fato que o lulismo conseguiu criar o primeiro sistema efetivo de
assistência social no Brasil, algo realmente fundamental, é também inegável que
sua criatividade político-social parece esgotada. Hoje, o governo pratica um
discurso das conquistas passadas que devem ser preservadas, não dos projetos
futuros que devem ser alcançados. Um exemplo: o governo tem um programa crível
de universalização do ensino publico de qualidade? Ou do sistema de saúde?
Vejam, não há sequer um projeto neste sentido. Algo do tipo: queremos um
sistema público universal de ensino de alta qualidade em, digamos, quinze anos.
Por outro lado, a incapacidade crônica do PT em
fazer uma autocrítica a respeito de casos de corrupção no governo será algo
mortal. O discurso da luta contra a corrupção não é necessariamente um fantasma
que a direita levanta quando procura fazer a crítica do Estado que rouba o
dinheiro do contribuinte. Vejam, por exemplo, a Islândia. Lá, o discurso contra
a corrupção serviu para criticar o neoliberalismo com sua relação incestuosa
entre bancos e classe política, entre sistema financeiro e processo decisório
dos governos. Perder o discurso do combate à corrupção, abrindo mão da
possibilidade de focá-lo nos corruptores do Estado (grandes empresas, sistema
financeiro), será algo imperdoável.
Brasil de Fato - Um intelectual que utiliza diversas
mídias sociais para se expressar pode encontrar não raramente obstáculos e
censuras. Há casos polêmicos de “demissão” de jornalistas por entrarem em
conflito com determinados setores sociais ou figuras políticas. Na sua
experiência, mídias públicas e comerciais se distinguem no que se refere à
liberdade de expressão?
Vladimir Safatle - Nunca fui censurado, de forma
alguma. Creio que isto ocorreu porque sempre fui bastante claro em minhas
posições políticas e engajamentos. Quem me chamou para expressar minhas
opiniões sabia de antemão o que viria. Como dizia o velho Lutero: “Aqui eu
permaneço e não posso fazer de outra forma”. “Eles a fizeram abrir uma nova
conta, agora corrente, mas até hoje só vieram despesas”.
Vladimir Safatle é professor do departamento de filosofia da
Universidade de São Paulo, um dos coordenadores do Laboratório de Teoria
Social, Filosofia e Psicanálise (Latesfip) da USP, colunista da Folha de S.
Paulo, da revista Carta Capital e da revista Cult, e comentador do Jornal da
Cultura da Rede Cultura de Televisão.
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/12122
27/02/2013
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