Ricardo Álvares
Crianças em Pontinha |
Pontinha é uma comunidade quilombola formada por
uma parentela composta por cerca de 240 núcleos familiares totalizando,
aproximadamente, 2.000 pessoas, segundo informações de lideranças locais e de
Sabará (2001).
Seu território se situa no município de
Paraopeba, Minas Gerais, que possui uma extensão territorial de 625,1km2,
encontrando-se na microrregião de Sete Lagoas e mesorregião metropolitana de
Belo Horizonte, segundo classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística, IBGE.
As moradias de Pontinha estão dispostas
principalmente em uma região mais densamente habitada, composta por cerca de
sete vias ao longo das quais se concentram quase todas as habitações da
comunidade, mas existem algumas um pouco mais afastadas. Estas vias centrais se
estendem por aproximadamente 3km em linha reta, mas totalizam cerca de 7km.
Uma das moradias em Pontinha |
Na região sudeste deste
núcleo se situam os principais equipamentos públicos, tais como capela, escola,
posto de saúde (desativado), sede da associação comunitária, praça pública,
quadra esportiva, campo de futebol, dois pontos de ônibus e três dos diversos
bares existentes na comunidade, além de dois banheiros públicos destinados a
ocasiões festivas. A capela de Nossa Senhora do Rosário, padroeira local e em
honra da qual funciona a Guarda de Congo (congado) existente na comunidade se
encontra no centro da praça, ao passo que os demais equipamentos citados, com
exceção de um dos pontos de ônibus (também na praça), se encontram no seu
entorno. Este é o único espaço que conta com pavimentação asfáltica, realizada
em 2006. As demais ruas não têm nenhum tipo de pavimentação e nas mesmas
predomina uma densa poeira vermelha durante dois terços do ano, decorrente da
movimentação de veículos e animais em época de seca. No outro terço do ano
predomina o barro, devido às chuvas constantes. Os dois pontos de ônibus
possuem coberturas para proteger aos passageiros das intempéries do tempo. Os
ônibus, velhos e precários, não obstante, passam apenas duas vezes por dia. Uma
num sentido (sede do município de Papagaios), outra no outro (sedes dos
municípios de Caetanópolis e Paraopeba). No mais, circulam veículos de
transporte de empresas de reflorestamento e extração mineral existentes na
região, além de um ou outro carro menor, inclusive de pessoas da comunidade.
Capela de Nossa Senhora do Rosário |
Além deste espaço no qual se concentram as
moradias existe a área denominada de “larga” ou “comum da Pontinha”. Trata-se
de área de uso comum, formada pela maior parte do território ainda disponível.
É na “larga” que os moradores desenvolvem a maior
parte de suas atividades produtivas. Nesta área de uso comum desenvolvem, há
várias décadas, uma atividade extrativista bastante disseminada na região e que
ocorre fundamentalmente no período de seca (entre março e outubro). Trata-se da
extração do Rhinodrilus alatus, oligoqueto endêmico dos cerrados da região
central de Minas Gerais, com cerca de 60cm de comprimento e 1,2cm de diâmetro,
mais conhecido como minhocuçu. Este animal é muito apreciado como isca de
pesca. Seu preço varia de acordo com a época do ano, mas geralmente gira em
torno de um real cada animal. Cada trabalhador chega a retirar de duas a cinco
dúzias por dia, dependo de sua habilidade (Guimarães, 2007). A venda é feita
para atravessadores que, por sua vez, os revendem em barracas situadas ao longo
da BR040, principalmente no trecho entre Caetanópolis e Curvelo.
Minhocuçu armazenado para venda |
Atualmente limitados a uma pequena faixa de seu
território original, aqueles que extraem o minhocuçu se vêem na necessidade de
extrapolar as áreas que lhes restaram, explorando o solo de propriedades
vizinhas.
Dentre estas propriedades, fazendas nas quais se
exerce a pecuária, com extensas pastagens formadas e irrigadas por pivôs
centrais.
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Imagem de satélite demonstrando a ocupação e o arruamento da região central da Comunidade de Pontinha |
Além disso, há uma grande área totalmente ocupada
por reflorestamento de eucalipto, pertencente a uma multinacional franco-germânica
(mas, atualmente, com capital 100% francês), denominada Vallourec-Mannesmann
Tubes. Esta multinacional utiliza, no Brasil, o nome fantasia V&M do Brasil
e possui subsidiárias na área de mineração (V&M Mineração) e na área de
reflorestamento (V&M Florestal). A V&M Tubes produz tubos de aço sem
costura e possui negócios em quatro continentes.
Como nem sempre recebem permissão para o
desenvolvimento de suas atividades extrativas nestas áreas vizinhas,
principalmente quando utilizam o artifício das queimadas para localizar os
melhores pontos de extração do minhocuçu, costuma-se registrar situações tensas
e conflituosas.
Contudo, é fato recorrentemente mencionado na
região que a Comunidade de Pontinha possuía grande extensão territorial.
Versões mais frequentemente citadas se referem a cerca de 600 alqueires (algo
próximo a 3.000ha). Hoje, não obstante, a comunidade não ocupa muito mais que
100 a 200ha.
O esbulho foi se dando ao longo de todo o século
XX principalmente. Nunca houve uma divisão formal do território, utilizado como
terra comum, até que em 1939 alguns moradores, de certo já temendo perder a
posse das áreas que utilizavam com maior freqüência, entraram com pedido de
usucapião de uma parcela da área. Nesta ocasião, segundo informação de 1990 do
jornalista Geraldo Martins Costa, reproduzida por Sabará, “(…) foi requerido o
direito de usucapião, surgindo então 63 proprietários que receberam 5,99
hectares de terras de cultura e 312,86 de campo, perfazendo um total de
2.384,55 hectares” (2001: 105). A simples soma dos valores não permite entender
como o jornalista chegou à área total citada. Contudo, é possível inferir que
esta ação de usucapião teve papel decisivo para a atual conformação territorial
da comunidade, formada por ocupações privadas transmitidas pela descendência
direta, associadas a territórios de uso coletivo na “faixa de larga”.
É provável que tenham entrado com este pedido de
usucapião por orientação de algum agente externo e por perceberem que esta era
uma estratégia comumente empregada por posseiros da região para se tornarem
proprietários de áreas vizinhas ao seu território ou mesmo dentro deste. Mas,
fato é que este procedimento abriu um precedente e uma brecha, explorada por
grileiros da região, conforme aponta Sabará (2001). Ocorre que nas demandas por
regularização fundiária, por meio do estatuto do usucapião, tais grileiros
muitas vezes figuravam como “condôminos” e ou compravam “cotas” de alguns dos
condôminos originais da própria comunidade, vindo a requerer a divisão do “condomínio”
logo após, por meio de outras ações judiciais, e se tornando proprietários
“legais” de grandes extensões de áreas dentro do território da Comunidade de
Pontinha.
Pela mesma forma, outros métodos igualmente
questionáveis também foram empregados, como a compra de áreas por preços
irrisórios ou até mesmo em troca de quantidades reduzidas de gêneros
alimentícios, se valendo de ocasiões de maior dificuldade material de membros
da comunidade. Após efetuada a “compra” se realizava o cercamento da área, sendo
que os mais velhos da comunidade narram que muitas vezes era para se cercar um
alqueire e se cercavam cinco ou mais, sem que os moradores de Pontinha
questionassem de forma mais incisiva. Além de tudo, narram que sempre havia a
idéia de que a terra era grande e não faria assim tanta falta um pedacinho aqui
e outro ali.
Lagoa Dourada, parcialmente fora do território nos dias de hoje |
O mais extenso dos processos judiciais visando à
apropriação “legal” de grande parte do território de Pontinha se iniciou em
1945 e se arrasta no Poder Judiciário, sem solução, até hoje. Trata-se de
processo batizado de “Ação de Divisão das Terras da Fazenda da Pontinha”,
aberto em 16 de fevereiro de 1945 e já contando com oito volumes, embora um dos
quais considerado desaparecido (Sabará, 2001).
Ainda no bojo deste processo, em 1990 a comunidade
enfrentou a situação mais conflituosa já registrada. Naquela oportunidade, um
grande proprietário de terras da região, chamado Pedro Moreira Barbosa, que
provavelmente comprou as “cotas de condomínio” de partes em litígio com os
membros da comunidade, entrou em 08 de maio com “Ação Cautelar Inominada”
através da qual requeria:
“1 – A intimação pessoal dos Réus para que se
abstenham de molestar, turbar ou impedir os Requerentes no seu direito de usar,
dispor e trabalhar sua glebas estatuídas na ‘Ação de Divisão da Fazenda da
Pontinha’, por si ou insuflando terceiros, aplicando-se-lhes pena pecuniária
que pedem seja fixada no valor correspondente ao quantum mensal de um Piso
Nacional de Salários, diariamente, por dia e por Réu, nos quais os Requerentes
se vejam impedidos de continuar suas atividades já especificadas.
2 – Seja concedida aos Requerentes e seus
prepostos, a suficiente e indispensável proteção policial para realização dos
trabalhos já descritos, determinando V. Exa, a requisição respectiva do Sr.
Comandante da Polícia Militar local, que diligenciará, se for o caso, no
sentido de obtenção de reforços que se fizerem necessários, junto a seus
superiores. Determine ainda V. Exa. Aos srs. policiais designados para o múnus
todo o acautelamento necessário à integridade física das pessoas, inclusive com
busca e apreensão de armas portadas ilegamente, e que autuem em flagrante toda
e qualquer pessoa que venha a agir contra os Requerentes à semelhança dos Réus
no presente caso, apresentando-os ao Sr. Delegado de Polícia, na forma da Lei.”
(Folhas 8 e 9 da Ação Cautelar Inominada, citado por Sabará, 2001: 117).
Os fatos se desdobraram por longo período, com
idas e vindas na justiça e envolvimento de poderes policiais, conforme
solicitado pelos requerentes, não cabendo aqui descrever este episódio em
minúcias. Entretanto, cabe registrar que este foi um fato extremamente marcante
para a comunidade, se tornando referência em qualquer diálogo com seus membros.
A imprensa local, assim como parte considerável dos representantes dos poderes
públicos municipais se posicionou favoravelmente à comunidade. Como
conseqüência, rapidamente os vereadores aprovaram e o Prefeito Municipal
sancionou, a Lei Municipal 1.662, de 1990, através da qual foi definida como
“de utilidade pública para preservação natural, ecológica e cultural uma área
de 96 hectares, tendo como marco central a Fazenda Pontinha, na comunidade de
mesmo nome” (Guimarães, 2007: 6).
Portanto, embora apenas para uma pequena parte de
seu território original, foi encontrada no próprio nível local uma solução
bastante peculiar para a situação conflituosa registrada, e em uma ocasião em
que o artigo 68 ainda não era suficientemente acionado para a resolução deste
tipo de situação.
Aspectos do cotidiano na comunidade |
Não obstante a importância desta solução
paliativa, o território da comunidade se encontra nos dias de hoje bastante
reduzido. Meios jurídicos ou não foram utilizados para o esbulho deste grande
território original, citado não apenas através da memória dos membros da
comunidade como por pessoas não pertencentes à comunidade. A exploração de
eucalipto pela V&M Florestal devasta grande parte de seu território
original. Em grandes e médios estabelecimentos agropecuários se desenvolve,
principalmente, a criação de gado. Enquanto isso, encontra-se limitado o acesso
de membros da comunidade a referenciais de grande importância do ponto de vista
simbólico, como a Lapa de São Bento e a mitológica Lagoa Dourada. Desta forma,
atualmente a Comunidade de Pontinha se encontra mobilizada para a
regulamentação fundiária de seu território de acordo com a legislação
existente, se auto-identificando como comunidade quilombola.
A Constituição Federal de 1988, ao atribuir
direitos territoriais específicos aos “remanescentes das comunidades dos
quilombos” criou não apenas uma categoria jurídica, os “remanescentes de
quilombos”, como reforçou uma referência territorial e, portanto, de
pertencimento, o “quilombo”. Além disso, proporcionou que a ressemantização
deste conceito de quilombo principalmente por parte dos grupos sociais
envolvidos, assim como por pesquisadores e agentes políticos da esfera
não-governamental e do próprio Estado, fosse evidenciada no embate jurídico e
político que tem sido travado deste a promulgação da referida carta magna, com
destaque para a segunda metade da década de 1990 em diante.
Pôr do sol em meio ao cerrado, bioma predominante na região do território da Pontinha |
Neste sentido, quando atualmente uma comunidade
negra rural se autodefine, conforme o Artigo 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 ou o Decreto
4.887, de 20 de novembro de 2003, como remanescente de quilombo, ou quilombola,
ela está, dentre outras coisas, se articulando etnicamente em torno de um
pleito por direitos específicos que lhe confere primazia territorial sobre uma
determinada área. Este território tem fundamental importância para que possa
assegurar a reprodução social e cultural das gerações presentes e futuras,
assim como salvaguardar a memória das gerações passadas.
Atualmente, portanto, Pontinha aguarda
ansiosamente pela regularização de seu território.
Bibliografia Citada:
GUIMARÃES, Artur Queiroz. Pesquisa-ação na
Comunidade Quilombola de Pontinha: do pensamento ingênuo e negativo ao
pensamento crítico e propositivo. Belo Horizonte, 2007 (mimeo).
SABARÁ, Romeu. Comunidade Negra Rural de
Pontinha: agonia de um modo de produção. Belo Horizonte, 2001. (mimeo)
(Nota: Este texto é uma versão reduzida e
modificada do ensaio “Conflito territorial e emergência étnica na Comunidade de
Pontinha”, apresentado no GT17, “Etnia, Raça e Região: novas abordagens de
processos identitários, políticos e culturais contemporâneos”, durante a
Reunião Equatorial de Antropologia, entre 08 e 11 de outubro de 2007, em
Aracaju-SE. Publicado originalmente em: http://quilombos.wordpress.com/2008/09/08/comunidade-de-pontinha-embate-juridico-e-conflito-territorial/
em 08/09/2008)
Fonte:http://racismoambiental.net.br
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