Esses
seres, que se reconhecem, se unem e lutam. E serão eles, os seres que lutam que
tornarão para a terra sua semente e dela verão brotar o seu perdão.
Marina Tavares
Uma jovem garota, litogravura de Joan Miró de 1948. |
Era um tantão de terra. Por ela, corriam grandes
veias de água limpa. E da terra nasciam árvores e das árvores nasciam frutos e
flores. Das flores, o perfume. Um cheiro, assim, de mundo inteiro. E dos frutos
se alimentavam os seres.
E os seres, então, alimentavam a terra, tratavam a
terra para que crescesse o novo alimento. Aprenderam os seres a abrir a vala da
terra e lá semear a semente. E da semente vinha o pólen, o beija-flor, a
açucena.
Da semente da terra vinha tudo o que precisavam para sobreviver: a água,
o alimento, o abrigo e a beleza - sem a qual morreriam. Um dia, os seres
inventaram a estaca. Cortaram uma ripa de árvore e a cravaram bem no fundo na
terra. Depois, inventaram a cerca. Prenderam o fio na estaca e disseram: aqui,
é meu.
Da semente da terra veio à farinha, o café e o
ouro. Do brilho do ouro nasceu um brilho esquisito no olho dos seres. Os seres
inventaram o papel e nele escreveram que valia ouro. Mais tarde, até
esqueceriam um pouco da pedra, porque o simples papel já lhes acenderia as retinas
– como a sineta tocada por Pavlov, trazendo saliva à boca do cão. E do dinheiro
inventaram os donos. A partir de agora, os nomes não eram da terra.
Os nomes da terra eram dos donos da terra: a minha
fazenda, o meu gado, a minha plantação. E, sendo os donos da terra donos dos
nomes da terra, passaram a chamar de seus, também, os demais seres que não
detinham o ouro, o papel que valia ouro e a terra comprada por ele: os meus
empregados, os meus serviçais.
Os donos da terra inventaram grandes sementeiras,
para que semeassem por eles tudo o que precisavam para sobreviver. Mas, agora,
o que precisavam para sobreviver não era mais água, alimento, abrigo e beleza.
Agora, inventaram que para sobreviver precisavam de dinheiro. E os donos da
terra inventaram que, para que eles tivessem muito dinheiro, quase todos
precisariam não ter nenhum.
Na terra, seus donos plantaram crateras, abriram
valetas, colheram pestes. Na terra, seus donos aprenderam o mando, descalçaram
pés alheios, açoitaram carnes e bebericaram em copos altos. Da ripa da árvore
criaram grilhões, paus-de-arara e úlceras.
Do fundo da terra cresceram, como
imensos baobás, prédios cinzas e malcheirosos – tão fétidos que faziam com que
o odor se espalhasse por ruas e vales distantes, pelas moradas de mães, pais e
filhos que jamais gostariam de conhecer o seu cheiro de silêncio e sangue.
Na terra, seus serviçais lavaram roupas e
valentias, encararam o medo, aprendendo com a noite, aquela que clareia. E,
hoje, ao assistir aos noticiários, ao engolir seus nomes sujos nos rótulos de
sua comida, nas etiquetas de livros, nos calçados vindos de além-mar, ouve se,
no mundo inteiro, uma melodia fina e precisa, um silêncio em ondas que ressoa a
verdade inconteste: a da “ternura e do despojamento” - como disseram ao
inventarem palavras àqueles que serviram para cantar as doenças do mundo.
O que os donos da terra não sabem é que os seres
sobre os quais julgam deter os nomes, os seus serviçais, os seus empregados, trazem,
dentro de si, o maior segredo da terra: aquela mesma semente, nascente da água,
do abrigo, do alimento.
O que os donos da terra não sabem é que a beleza, que
julgam não mais carecer para sobreviver, germina dentro de cada um desses seres
e, neles, se volta em compreensão. Esses seres, preenchidos por beleza, se
reconhecem. Esses seres, que se reconhecem, se unem e lutam. E serão eles, os
seres que lutam que tornarão para a terra sua semente e dela verão brotar o seu
perdão.
06/12/2012
Marina Tavares é poeta, escritora e estudante de
letras.
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