Os
escritores moçambicanos Ungulani Ba Ka Khosa e Calane da Silva falam sobre os
desafios da literatura africana.
Thalles
Gomes de Marechal Deodoro (AL)
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Cordéis pendurados na área da Feira Literária de Marechal Deodoro (AL) Foto: Thalles Gomes |
“Nós viemos de um continente onde se falam mais de
mil línguas. Só no nosso país, temos 23 línguas. Cada uma dessas línguas
vincula e mostra uma realidade cultural diferente. A pergunta que vocês vão
fazer é: como vocês tratam esse manancial todo?”
É assim que o escritor
moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa inicia sua intervenção sobre os rumos da
Literatura Africana durante a 2ª Flimar [Feira Literária de Marechal Deodoro],
ocorrida entre os dias 7 a 11 de setembro.
Sentado ao seu lado, o também moçambicano Calane da
Silva completa o quadro: “Fala-se que nós, em África, somos antagônicos,
conflituosos.
É mentira. As fronteiras dos estados, e nós somos dezenas de
países diferentes, foram demarcadas pelas potências coloniais. Isto quer dizer
que, em Moçambique, por exemplo, povos e etnias foram divididos ao meio. E nós
temos de construir nações a partir de territórios divididos. Esta é a prova
fundamental da luta política e cultural: aceitar as diferenças e construir uma
única nação.”
Em entrevista ao Brasil de Fato, os
escritores moçambicanos abordam os principais desafios da literatura africana
hoje.
Brasil de Fato – É possível falar em uma literatura
africana, com uma diversidade linguística, étnica e cultural tão grande?
Calane da Silva – Nós podemos, partindo do ponto de vista
geográfico, falar de uma literatura asiática, europeia, norte-americana. É uma
maneira de encaixar as coisas e depende de como nós, teóricos, gostamos de
compartimentar. Mas, na verdade, só existe uma única literatura, que é a
literatura humana, escrita pelos homens. Nós podemos compartimentar,
generalizar, mas isso às vezes é prejudicial, porque metemos todos no mesmo
saco. Há singularidades, há diversidades. No entanto, é bom que a gente
mantenha um pouco esse sabor local, porque a globalização está a fazer o
contrário, está a vir lá de cima o original. Então eu prefiro que nós falemos
de uma literatura universal, e dentro da literatura universal nós localizemos
as literaturas que se fazem em diversos países do mundo.
Brasil de Fato – E como se localiza a literatura
moçambicana neste quadro?
Calane da Silva – A nossa literatura é fruto da oratura. É uma
literatura de caráter oral, onde também temos contos, temos poesia, temos os
adivinhos, temos os dramas, os teatros, mas tudo em nível oral. Porque era uma
sociedade de iliteracia. Quem trouxe os alfabetos para África, em específico
Moçambique, foram os árabes, mais tarde apareceram os portugueses. Isso para
dizer que Moçambique tem a matriz cultural banto, que é a maioria, e tem
aportes culturais da Pérsia, da índia, da Arábia e da própria China.
Então a
nossa literatura é riquíssima. A literatura moçambicana é fruto dessa herança
tradicional oral, mas também surge em contraponto contra uma literatura
colonial, que foi de caráter exótico até os anos de 1930, de caráter
doutrinário até os anos de 1960 e, até 1975, antes da independência, foi de
caráter urbano, onde os protagonistas principais eram sempre o branco, o
português, o colono. Nossa literatura é riquíssima porque temos aqui, por
exemplo, o Ko Sa, de origem banto, o Mia Couto, de origem portuguesa, um Calane
mestiço e depois aparece um [Suleiman] Cassamo, negro e islâmico. Nossa
literatura é riquíssima porque engloba a realidade específica de nosso país, a
diversidade cultural de nosso país.
Brasil de Fato – Dentro dessa diversidade, qual o
papel exercido pela língua portuguesa em Moçambique?
Ungulani Ba Ka Khosa – A língua portuguesa funciona
como um manto aglutinador, essa própria língua também contribui para a
existência das outras línguas. Vocês têm 23 línguas, como é que vocês fazem? Aí
é que está a língua portuguesa a servir de suporte e a transportar essa
diversidade. Por exemplo, quando chegamos aqui e vimos um ônibus, nós dissemos:
“epa, está a vir um chimbombo”. E nós temos muitas dessas palavras que
transportamos para a língua portuguesa. O importante aqui é que essas línguas não
morram, não desapareçam. A língua portuguesa, ela própria, vai ganhando uma
certa soberania e autonomia porque vai aglutinar todos esses elementos
provenientes do banto. Tudo isso enriquece a língua portuguesa e faz com que
nós olhemos a língua e digamos: “epa, isso aqui vem daqui, essa outra palavra
dali”.
Calane da Silva – Outro ponto é a questão da unidade nacional e da
diversidade linguística. Será que a diversidade linguística nos pode fazer
rachar o país? Qual o papel da língua portuguesa? É um papel aglutinante e
unificador, onde todas as etnias através do português podem se comunicar. Mas
isto não significa que, por termos escolhido o português como língua ofi cial,
desprezemos as línguas locais. Pelo contrário. Em grande parte da zona do
interior do país, há uma escolarização na língua materna de origem banto.
Quando chega ao secundário, começa a usar português como língua de comunicação,
mas já tem sua base na língua materna.
Brasil de Fato – Isso quer dizer que vocês tomaram
o português para vocês e o transformaram numa língua que também é moçambicana?
Ungulani Ba Ka Khosa – É verdade.
Calane da Silva – Todas as línguas do mundo vivem de empréstimos.
As nossas línguas bantas também foram influenciadas por outras línguas. As
línguas são dinâmicas, inventivas. Nascem, crescem e também morrem. Então o
português, felizmente, é tão dinâmico, recebe sempre tantos empréstimos que é
sempre uma língua em evolução.
Brasil de Fato – Que influência exerceu o processo
de independência moçambicano para o desenvolvimento da literatura no país?
Calane da Silva – Depois da independência [1975], havia de nossa
parte uma utopia de construir um mundo igualitário um mundo mais igual, sem
assimetrias. E esse projeto foi, digamos torpedeado pelo imperialismo da época.
Nos bombardearam, nos invadiram e criaram um grupo de desestabilização armado
por eles, financiado por eles, que criaram um problema gravíssimo. Os alvos
fundamentais deles eram destruir as escolas e os hospitais, ou seja, os
alicerces para o novo país que estava a nascer. A guerra civil e de
desestabilização, com 1,5 milhões de mortos, atrasou esse processo de
integração por dezesseis anos.
Nos dias de hoje já temos cinco a sete nomes
internacionalizados em nossa cultura. Ela é forte e dinâmica. Deixe-nos
respirar. Estamos a ganhar fogo. Não tínhamos no ensino superior nenhum
professor doutor. Passados esses trinta anos, já podemos contar com 40
professores doutores, formados em várias universidades do mundo, incluindo
Brasil, Portugal, França, Itália, Inglaterra, Espanha, EUA. Não só na área
técnica, mas também na área cultural. E isso vai enriquecendo cada vez mais e
possibilitando a investigação daquilo que é nosso.
Brasil de Fato – Como vocês enxergam a relação
entre as literaturas africana e brasileira?
Calane da Silva – O Jorge Amado, para nós dos países africanos de
língua portuguesa, foi fundamental no despertar de muitas coisas que estavam
lá, em nossa volta, mas não percebíamos. Os Subterrâneos da Liberdade, Capitães
de Areia foram fundamentais para que nós despertássemos para o que estava a
nossa volta. E quem levou esses livros, que eram proibidos na época colonial
pela Polícia Política de Moçambique, foram os marinheiros brasileiros que
aportavam no porto de Maputo. Foram pelas mãos desses marinheiros que esses
livros chegaram até nós e circulavam, apesar de proibidos. Ferreira Gullar
disse certa vez que quando os artistas e intelectuais brasileiros fugiram para
o mundo, também trouxeram o mundo para o Brasil.
É o que acontece conosco. A
luta armada de libertação nacional contra o colonialismo português abriu-nos
novos horizontes. Durante a luta armada nós víamos o governo militar brasileiro
como nosso inimigo, porque ele apoiava o colonialismo português. Eu fui
designado pelo governo moçambicano para vir aqui em 1981 para conhecer o outro
Brasil que estava a mudar com a Anistia. Eu entrevistei o Lula ainda como
sindicalista metalúrgico em São Paulo, o Chico Buarque, o Jorge Amado, aquela
gente toda que estava a despontar para uma nova realidade política, econômica e
também cultural. Houve então um certo descongelamento de relações entre Brasil
e Moçambique. A guerra de desestabilização atrasou esse processo e só agora
esse intercâmbio ganhou força outra vez.
Ungulani Ba Ka Khosa – Eu acho que há um novo patamar
que está a se abrir, porque já está havendo um intercâmbio muito grande.
Primeiro, nas universidades. Já há intercâmbio entre as universidades africanas
e universidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Pará, Maranhão, Bahia,
Pernambuco, Paraná, Alagoas. Eu acho que esse é o primeiro patamar de
intercâmbio. O segundo é o próprio mercado livreiro, que é outro ponto, outros
interesses econômicos, editoriais, de marketing. Nesse momento, com o novo acordo
ortográfico, vai se permitir que a circulação de livros seja maior. Nossa saída
para o exterior não terá de passar pelo crivo português. E nem vocês precisarão
passar por Portugal para chegar a nós. Isso vai permitir com que nós não
tenhamos mais o atravessador. Há um grande desconhecimento entre as literaturas
de língua portuguesa. Um desconhecimento completo, costas voltadas. O
importante para nós que escrevemos em português é implementarmos um
conhecimento mútuo e sem complexos.
Brasil de Fato – E como está esse diálogo dentro do
próprio território africano?
Ungulani Ba Ka Khosa – A nossa capital, Maputo, está a
cerca de 500 km da capital econômica da África do Sul, Johanesburgo. Mas se
fores perguntar a nós ou aos sul-africanos se conhecemos a literatura um do
outro, não conhecemos nada. Nada. Hoje, na África do Sul, a literatura é vasta
e riquíssima, mas não é conhecida. E mesmo assim, aquilo que os sul-africanos
exportam da literatura deles é aquilo que os próprios europeus querem conhecer.
Vocês aqui na América Latina provavelmente encontram com alguns vizinhos da
Argentina ou Paraguai. Talvez com algumas traduções. Mas nós dificilmente
conhecemos um escritor do Maláui, da Zâmbia, do Congo, da Tanzânia. E não é só
uma barreira de língua. Mesmo entre os de língua inglesa, os zimbabuanos não
conhecem o escritor tanzaniano ou queniano. Mas tu vais para Alemanha, és
convidado, e encontras lá os escritores africanos. Não há intercâmbio, não nos
conhecemos.
Calane da Silva – É um problema de base sociopolítica e econômica.
Nós temos de nos juntar, nós temos de olhar para nós mesmos. A Europa está
falida. Estou a falar do ponto de vista ecológico e cultural. Já faliu, já
deram tudo. O que é que está acontecendo é a emergência dos antigos países
colonizados – a China, a Índia, a África do Sul, o Brasil. Porque nós já temos
independência tecnológica. Fabricamos o chip e fabricamos o satélite, feito por
nós e enviado por nós. Então é tempo de nós trocarmos as nossas literaturas.
Não precisamos deles para nada! É urgente que a América Latina, que a África,
que a Ásia se juntem e somem esforços. Que eles não nos traduzam, vamos nós
traduzir a nós mesmos. Isso só vai depender de nós. Temos de nos conhecer a nós
mesmos. Juntemos esforços e eles que nos engulam!
Calane da Silva foi jornalista durante 25 anos e participou
ativamente do processo de independência do país. É autor de livros de poesia e
ensaios literários, além de professor universitário e diretor do Centro
Cultural Brasil-Moçambique em Maputo.
Ungulani Ba Ka Khosa é diretor do Instituto do Livro
de Moçambique. Sua obra Ualalapi venceu o Grande Prêmio de Ficção Moçambicana e
foi considerada um dos cem melhores romances africanos do século 20.
Fonte: http://www.brasildefato.com.br
14/12/2011
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