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quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

PRECISAMOS TRADUZIR A NÓS MESMOS


Os escritores moçambicanos Ungulani Ba Ka Khosa e Calane da Silva falam sobre os desafios da literatura africana.
 Thalles Gomes de Marechal Deodoro (AL)
Cordéis pendurados na área da Feira Literária de Marechal Deodoro (AL)
Foto: Thalles Gomes



“Nós viemos de um continente onde se falam mais de mil línguas. Só no nosso país, temos 23 línguas. Cada uma dessas línguas vincula e mostra uma realidade cultural diferente. A pergunta que vocês vão fazer é: como vocês tratam esse manancial todo?”

É assim que o escritor moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa inicia sua intervenção sobre os rumos da Literatura Africana durante a 2ª Flimar [Feira Literária de Marechal Deodoro], ocorrida entre os dias 7 a 11 de setembro.

Sentado ao seu lado, o também moçambicano Calane da Silva completa o quadro: “Fala-se que nós, em África, somos antagônicos, conflituosos.

É mentira. As fronteiras dos estados, e nós somos dezenas de países diferentes, foram demarcadas pelas potências coloniais. Isto quer dizer que, em Moçambique, por exemplo, povos e etnias foram divididos ao meio. E nós temos de construir nações a partir de territórios divididos. Esta é a prova fundamental da luta política e cultural: aceitar as diferenças e construir uma única nação.”

Em entrevista ao Brasil de Fato, os escritores moçambicanos abordam os principais desafios da literatura africana hoje.

Brasil de Fato – É possível falar em uma literatura africana, com uma diversidade linguística, étnica e cultural tão grande?

Calane da Silva – Nós podemos, partindo do ponto de vista geográfico, falar de uma literatura asiática, europeia, norte-americana. É uma maneira de encaixar as coisas e depende de como nós, teóricos, gostamos de compartimentar. Mas, na verdade, só existe uma única literatura, que é a literatura humana, escrita pelos homens. Nós podemos compartimentar, generalizar, mas isso às vezes é prejudicial, porque metemos todos no mesmo saco. Há singularidades, há diversidades. No entanto, é bom que a gente mantenha um pouco esse sabor local, porque a globalização está a fazer o contrário, está a vir lá de cima o original. Então eu prefiro que nós falemos de uma literatura universal, e dentro da literatura universal nós localizemos as literaturas que se fazem em diversos países do mundo.

Brasil de Fato – E como se localiza a literatura moçambicana neste quadro?

Calane da Silva – A nossa literatura é fruto da oratura. É uma literatura de caráter oral, onde também temos contos, temos poesia, temos os adivinhos, temos os dramas, os teatros, mas tudo em nível oral. Porque era uma sociedade de iliteracia. Quem trouxe os alfabetos para África, em específico Moçambique, foram os árabes, mais tarde apareceram os portugueses. Isso para dizer que Moçambique tem a matriz cultural banto, que é a maioria, e tem aportes culturais da Pérsia, da índia, da Arábia e da própria China.

Então a nossa literatura é riquíssima. A literatura moçambicana é fruto dessa herança tradicional oral, mas também surge em contraponto contra uma literatura colonial, que foi de caráter exótico até os anos de 1930, de caráter doutrinário até os anos de 1960 e, até 1975, antes da independência, foi de caráter urbano, onde os protagonistas principais eram sempre o branco, o português, o colono. Nossa literatura é riquíssima porque temos aqui, por exemplo, o Ko Sa, de origem banto, o Mia Couto, de origem portuguesa, um Calane mestiço e depois aparece um [Suleiman] Cassamo, negro e islâmico. Nossa literatura é riquíssima porque engloba a realidade específica de nosso país, a diversidade cultural de nosso país.

Brasil de Fato – Dentro dessa diversidade, qual o papel exercido pela língua portuguesa em Moçambique?

Ungulani Ba Ka Khosa – A língua portuguesa funciona como um manto aglutinador, essa própria língua também contribui para a existência das outras línguas. Vocês têm 23 línguas, como é que vocês fazem? Aí é que está a língua portuguesa a servir de suporte e a transportar essa diversidade. Por exemplo, quando chegamos aqui e vimos um ônibus, nós dissemos: “epa, está a vir um chimbombo”. E nós temos muitas dessas palavras que transportamos para a língua portuguesa. O importante aqui é que essas línguas não morram, não desapareçam. A língua portuguesa, ela própria, vai ganhando uma certa soberania e autonomia porque vai aglutinar todos esses elementos provenientes do banto. Tudo isso enriquece a língua portuguesa e faz com que nós olhemos a língua e digamos: “epa, isso aqui vem daqui, essa outra palavra dali”.

Calane da Silva – Outro ponto é a questão da unidade nacional e da diversidade linguística. Será que a diversidade linguística nos pode fazer rachar o país? Qual o papel da língua portuguesa? É um papel aglutinante e unificador, onde todas as etnias através do português podem se comunicar. Mas isto não significa que, por termos escolhido o português como língua ofi cial, desprezemos as línguas locais. Pelo contrário. Em grande parte da zona do interior do país, há uma escolarização na língua materna de origem banto. Quando chega ao secundário, começa a usar português como língua de comunicação, mas já tem sua base na língua materna.

Brasil de Fato – Isso quer dizer que vocês tomaram o português para vocês e o transformaram numa língua que também é moçambicana?

Ungulani Ba Ka Khosa – É verdade.

Calane da Silva – Todas as línguas do mundo vivem de empréstimos. As nossas línguas bantas também foram influenciadas por outras línguas. As línguas são dinâmicas, inventivas. Nascem, crescem e também morrem. Então o português, felizmente, é tão dinâmico, recebe sempre tantos empréstimos que é sempre uma língua em evolução.

Brasil de Fato – Que influência exerceu o processo de independência moçambicano para o desenvolvimento da literatura no país?

Calane da Silva – Depois da independência [1975], havia de nossa parte uma utopia de construir um mundo igualitário um mundo mais igual, sem assimetrias. E esse projeto foi, digamos torpedeado pelo imperialismo da época. Nos bombardearam, nos invadiram e criaram um grupo de desestabilização armado por eles, financiado por eles, que criaram um problema gravíssimo. Os alvos fundamentais deles eram destruir as escolas e os hospitais, ou seja, os alicerces para o novo país que estava a nascer. A guerra civil e de desestabilização, com 1,5 milhões de mortos, atrasou esse processo de integração por dezesseis anos. 

Nos dias de hoje já temos cinco a sete nomes internacionalizados em nossa cultura. Ela é forte e dinâmica. Deixe-nos respirar. Estamos a ganhar fogo. Não tínhamos no ensino superior nenhum professor doutor. Passados esses trinta anos, já podemos contar com 40 professores doutores, formados em várias universidades do mundo, incluindo Brasil, Portugal, França, Itália, Inglaterra, Espanha, EUA. Não só na área técnica, mas também na área cultural. E isso vai enriquecendo cada vez mais e possibilitando a investigação daquilo que é nosso.

Brasil de Fato – Como vocês enxergam a relação entre as literaturas africana e brasileira? 

Calane da Silva – O Jorge Amado, para nós dos países africanos de língua portuguesa, foi fundamental no despertar de muitas coisas que estavam lá, em nossa volta, mas não percebíamos. Os Subterrâneos da Liberdade, Capitães de Areia foram fundamentais para que nós despertássemos para o que estava a nossa volta. E quem levou esses livros, que eram proibidos na época colonial pela Polícia Política de Moçambique, foram os marinheiros brasileiros que aportavam no porto de Maputo. Foram pelas mãos desses marinheiros que esses livros chegaram até nós e circulavam, apesar de proibidos. Ferreira Gullar disse certa vez que quando os artistas e intelectuais brasileiros fugiram para o mundo, também trouxeram o mundo para o Brasil.

É o que acontece conosco. A luta armada de libertação nacional contra o colonialismo português abriu-nos novos horizontes. Durante a luta armada nós víamos o governo militar brasileiro como nosso inimigo, porque ele apoiava o colonialismo português. Eu fui designado pelo governo moçambicano para vir aqui em 1981 para conhecer o outro Brasil que estava a mudar com a Anistia. Eu entrevistei o Lula ainda como sindicalista metalúrgico em São Paulo, o Chico Buarque, o Jorge Amado, aquela gente toda que estava a despontar para uma nova realidade política, econômica e também cultural. Houve então um certo descongelamento de relações entre Brasil e Moçambique. A guerra de desestabilização atrasou esse processo e só agora esse intercâmbio ganhou força outra vez.

Ungulani Ba Ka Khosa – Eu acho que há um novo patamar que está a se abrir, porque já está havendo um intercâmbio muito grande. Primeiro, nas universidades. Já há intercâmbio entre as universidades africanas e universidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Pará, Maranhão, Bahia, Pernambuco, Paraná, Alagoas. Eu acho que esse é o primeiro patamar de intercâmbio. O segundo é o próprio mercado livreiro, que é outro ponto, outros interesses econômicos, editoriais, de marketing. Nesse momento, com o novo acordo ortográfico, vai se permitir que a circulação de livros seja maior. Nossa saída para o exterior não terá de passar pelo crivo português. E nem vocês precisarão passar por Portugal para chegar a nós. Isso vai permitir com que nós não tenhamos mais o atravessador. Há um grande desconhecimento entre as literaturas de língua portuguesa. Um desconhecimento completo, costas voltadas. O importante para nós que escrevemos em português é implementarmos um conhecimento mútuo e sem complexos.

Brasil de Fato – E como está esse diálogo dentro do próprio território africano?

Ungulani Ba Ka Khosa – A nossa capital, Maputo, está a cerca de 500 km da capital econômica da África do Sul, Johanesburgo. Mas se fores perguntar a nós ou aos sul-africanos se conhecemos a literatura um do outro, não conhecemos nada. Nada. Hoje, na África do Sul, a literatura é vasta e riquíssima, mas não é conhecida. E mesmo assim, aquilo que os sul-africanos exportam da literatura deles é aquilo que os próprios europeus querem conhecer. Vocês aqui na América Latina provavelmente encontram com alguns vizinhos da Argentina ou Paraguai. Talvez com algumas traduções. Mas nós dificilmente conhecemos um escritor do Maláui, da Zâmbia, do Congo, da Tanzânia. E não é só uma barreira de língua. Mesmo entre os de língua inglesa, os zimbabuanos não conhecem o escritor tanzaniano ou queniano. Mas tu vais para Alemanha, és convidado, e encontras lá os escritores africanos. Não há intercâmbio, não nos conhecemos.

Calane da Silva – É um problema de base sociopolítica e econômica. Nós temos de nos juntar, nós temos de olhar para nós mesmos. A Europa está falida. Estou a falar do ponto de vista ecológico e cultural. Já faliu, já deram tudo. O que é que está acontecendo é a emergência dos antigos países colonizados – a China, a Índia, a África do Sul, o Brasil. Porque nós já temos independência tecnológica. Fabricamos o chip e fabricamos o satélite, feito por nós e enviado por nós. Então é tempo de nós trocarmos as nossas literaturas. Não precisamos deles para nada! É urgente que a América Latina, que a África, que a Ásia se juntem e somem esforços. Que eles não nos traduzam, vamos nós traduzir a nós mesmos. Isso só vai depender de nós. Temos de nos conhecer a nós mesmos. Juntemos esforços e eles que nos engulam!



Calane da Silva foi jornalista durante 25 anos e participou ativamente do processo de independência do país. É autor de livros de poesia e ensaios literários, além de professor universitário e diretor do Centro Cultural Brasil-Moçambique em Maputo.
Ungulani Ba Ka Khosa é diretor do Instituto do Livro de Moçambique. Sua obra Ualalapi venceu o Grande Prêmio de Ficção Moçambicana e foi considerada um dos cem melhores romances africanos do século 20.

Fonte: http://www.brasildefato.com.br
14/12/2011


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